Há quem sonhe viver em uma eterna primavera, campos verdes durante todo o ano, ou mesmo, um verão sem fim, aproveitando o seu calor abundante, todavia, raro seria alguém cujo sonho é o infindável inverno, em sua escassez de sol e folhas. O Éden se mantém em nossa imaginação como o resquício de um tempo em que não havia pecado, como uma meta que deve ser alcançada, entretanto, é impossível materializar tal jardim.
Assim como o ano tem suas estações, fazendo com que a natureza nos ensine a viver conforme a imposição de fases, a vida dos homens também oscila, nos obrigando a compreender e nos adaptarmos aos diferentes momentos pelo qual passamos. Sendo certo que, diferente daquilo que sonhamos, teremos que enfrentar momentos de calmaria e turbulência.
Para que o leitor consiga imergir no proposto pelo texto, far-se-á mister que duas hipóteses sejam compreendas, aceitá-las, ou não, dependerá, claro, de cada um. É indispensável, portanto, apresentar o conceito de analogia entre indivíduo e sociedade, bem como, da chamada jornada do herói.
Construir a ideia de que uma sociedade funciona como um indivíduo, por mais que alguns acreditem ser uma tarefa complexa, é algo bem simples, pois temos diversas correspondências que podem ser suscitadas. Compreender que nosso corpo é composto por células com características individuais, que cumprem determinada missão para com o todo, sem, contudo, saírem de sua essência, ou seja, é uma associação natural na qual cada indivíduo mantém sua característica natural, não precisando se adaptar de forma artificial, logo, um neurônio não cumprirá o papel de um leucócito, pois sua existência é naturalmente compatível com o todo.
Outro exemplo é a regeneração das células, fazendo com que, em regra, o corpo tenha uma vida muito maior que as unidades de forma autônoma, além da interdependência orgânica entre as células, que, desempenhando seu papel natural, criam toda uma rede funcional, na qual, cada uma contribui para o funcionamento do todo. Assim sendo, pode-se admitir que, tal qual os membros de uma sociedade, as células funcionam como um conjunto de engrenagens, logo, há uma necessária ligação entre todo o corpo. A pandemia deixou evidente que o isolamento total é uma ideia impossível na prática.
Abre-se um parênteses para observar que a associação de células ou indivíduos funciona quando cada uma cumpre seu papel de forma orgânica, não sendo compelida ao desempenho de atividades alheias à sua natureza. Eis a razão de toda e qualquer ideologia estar fadada ao fracasso, pois, para que funcione, as partes que compõem o todo precisam servir aos desígnios daqueles que, artificialmente, apresentam soluções criadas com base em sua limitada visão de mundo, pois, sendo células, acreditam-se capazes de tomar os rumos do corpo, renunciando ao funcionamento natural de cada parte.
As ideologias sociopolíticas como o socialismo, fascismo, nazismo e até o anarquismo são disfuncionais, justamente, por acreditarem que há como determinar ao organismo, corpo, que funcione atendendo uma premissa artificial, ditando de forma imaginária que a sociedade seja adaptada conforme premissas idealizadas por partes integrantes dela, ainda que seja contrária a natureza daquele ser. É como se os neurônios, desconsiderando as funções de cada órgão, assumissem que o corpo humano vive em melhores condições em um ambiente subaquático, compelindo aos pulmões que respirem debaixo d’água, o que resultará em uma reação abrupta do corpo, emergindo tão logo possível em busca de ar, ou no afogamento, por não ser viável uma recuperação.
As ideologias coletivistas sempre adotaram uma postura na qual o centro, corrupto por acreditar compreender a existência do todo, tentará forçar os demais membros de uma sociedade a cumprirem seus desígnios, dando a importância conforme a sua ótica do organismo, para ilustrar, imagine-se que um cérebro ignore a relevância dos rins, determinando que tais células ajudem a respirar, deixando de lado sua função natural para que sirvam às pretensões do comando central. Por outro lado, no âmbito da anarquia, buscar-se-á dissolver o elo entre as células, descompromissando-as de sua função natural.
Quando se assume que cada uma das células, ou indivíduos, deve ser considerada, livre, única e relevante à sua maneira, sem a ideia de uma igualdade impositiva, mas natural, percebe-se que a riqueza de uma sociedade, ou mesmo de um único corpo, está na conexão natural entre suas partes, que funcionam conforme sua essência. A amalgama de um grupo deve ser perceptível por seus membros como algo que flui de sua existência, jamais como a imposição verticalizada, logo, nenhuma forma de sociedade será benéfica quando artificialmente criada, salvo para o grupo que a impõe aos demais.
Voltando à hipótese que nos interessa, compreender a relação entre indivíduo e sociedade também precisa passar pela máxima na qual há uma origem, uma existência e, até mesmo, o crepúsculo, o qual poderá deixar um legado aos que sucederão tanto o homem quanto a civilização. As sociedades surgem como derivações de outros grupos preexistentes, ainda que sejamos incapazes de apontar qual a sua ancestralidade, sabemos que um povo deriva de um ou mais grupos.
Em uma rápida comparação, contatamos que o povo brasileiro é descendente dos portugueses e indígenas que aqui habitavam, posteriormente, os demais imigrantes contribuíram com a criação do Brasil, portanto, nosso povo nasce da fusão de vários outros, conservando muito do que fora legado por seus ancestrais.
Acompanhando a linha de descendência dos portugueses, evidentemente por ser a que possuí maior histórico relatado, reduzindo-a em uma análise superficial, para facilitar a compreensão, chegamos a constatação que a sociedade brasileira é herdeira da portuguesa, que por sua vez deriva, além de outros povos, dos romanos e assim por diante. Sociedades que tiveram seu apogeu em um determinado momento histórico e deixaram seu legado na história do Brasil. Tal qual cada indivíduo que compunha tis civilizações, elas precisaram ter suas próprias vivências, experimentando momentos de glória e de turbulência.
Mencionados os romanos, uma civilização que já não existe, porém deixara diversos “descendentes”, tendo surgido de povos que habitavam a Península Itálica, no século VIII a.C, merecendo uma justa análise. Roma contava com o seu mito fundador, os irmão Rômulo e Remo, representatividade que servira como amalgama natural dos indivíduos que viviam naquela sociedade.
O Reino de Roma pode ser considerado a primavera daquela civilização, sua conturbada, porém engrandecedora infância, que forjou a sociedade que se tornaria grandiosa. A República Romana, período de grande importância, que sucedera a monarquia, foi também um momento conturbado na história daquela civilização, comparando-o a sua adolescência, ou mesmo, a juventude.
O Império Romano, que também pode ser lembrado como o apogeu daquela civilização, foi aquilo que podemos definir como a fase adulta da Roma antiga, entretanto, chegara o tempo em que aquela civilização teve sua queda, seu fim, dando origem a diversos povos, de certa forma, parindo toda a civilização ocidental tal como a conhecemos nos dias atuais.
Ao comparar a civilização romana a um único indivíduos, analogia que também poderia ser feita com outras tantas sociedades, precisamos observar que, em todas as fases da vida de um homem há momentos prósperos e períodos difíceis, tempos de vacas magras, como aqueles citados em Gênesis. Assim como a vida nos opõe constantemente obstáculos, para que apreendamos a superá-los e assim, nos tornemos mais fortes, a sociedade também é posta à prova durante toda sua existência.
É imperiosos ao indivíduo que supere sua primeira gripe, que sobreviva a feridas e outras tantas moléstias, bem como, aprenda com seus erras, ou dos outros, para que seja forte o suficiente em sua idade adulta, posto que, deverá trilhar seu caminho e estará entregue a toda sorte de desafios. Não é diferente em se tratando de um casal, caso em que os esforços e os obstáculos se somam, contudo, em tal hipótese, quando um fraquejar, seu par poderá lhe encorajar, como aquele que dá suporte ao ferido em uma empreitada, devendo ser um apoio mútuo, haja vista que, a sustentação moral de ambos não acabará enquanto um se mantiver altivo, resgatando aquele que, eventualmente, decidi entregar os pontos.
A chamada jornada do herói, ou Monomito, é um conceito usado na ficção para cria e analisar narrativas, todavia, como a arte é reflexo necessário daquilo que nos cerca, resta evidente que tal conceito também se aplica ao mundo real, dadas as devidas proporções. A ideia é criar uma linha lógica padrão na qual as narrativas se enquadram quando se tenta compreender o caminho de uma personagem protagonista durante o desenvolver da trama.
A jornada do herói se perfaz em doze fases que de forma bem resumida merecem a devida atenção.
Começando pelo mundo comum, expondo que é o herói e o mundo que o cerca, buscando dar ambientação ao leitor para que o protagonista não seja uma criatura sem qualquer identificação, não surge para cumprir aquela jornada, precisando ter um prelúdio em sua existência, Nesta esteira, cada um de nós, surge naturalmente, sem que identifique se lhe recai uma missão específica ou mesmo se sua grandeza se dará em cumprir um papel, que embora parece coadjuvante, exerce protagonismo em sua própria história de vida. O mundo comum é o ambiente em que vivemos e como tocamos nossas vidas, o lugar em que estamos confortavelmente, ou não, habituados a existir. Se traduz em nossa cidade, bairro, vila, família e tudo aquilo faz parte do cenário natural de nossa existência.
Em um segundo momento haverá o chamado à aventura, que apresenta um desafio necessário e capaz de tirar o herói de sua “zona de conforto”, aqui, muitos leitores podem não ver esse ponto em suas vidas, entretanto, criar uma família, assumir um trabalho, mudar-se para longe ou mesmo arriscar em uma empreitada, pode ser a jornada de cada um, que, sem dúvida, se originou de um chamado. Logo em seguida temos a recusa ao chamado, aquele momento em que o herói prefere se manter no mundo comum ao enveredar-se por uma aventura arriscada, o que também se aplica a nossa vida cotidiana, basta perceber quantas foram as vezes que titubeamos diante de mudanças, nos recusando a sair da zona de conforto e dar um passo que sabemos ser necessário.
O quarto ponto é o encontro com o mentor, momento em que o protagonista se depara com alguém que o encorajará, abrindo sua perspectiva, para que decida cruzar a linha entre o mundo comum e a aventura em busca de algo maior.
Após ciente de que existe algo maior que deve motivar o protagonista a seguir em frente, chegamos a fase denominada travessia do limiar, na qual o herói, finalmente, deixa seu porto seguro para dar a largada em sua missão. O início da empreitada leva-o a passar por provações menores, descobrir aliados e adversários, o ponto em que o herói começa a se preparar para grandes desafio.
A fase chamada de aproximação da caverna é aquela em que o protagonista precisa ter um momento de reflexão, de preparação e, por que não dizer, de tranquilidade antes de enfrentar o seu grande desafio. É a calmaria que antecede a tempestade, momento de recuperar o fôlego e as energias para o grande embate que terá de superar, por outro lado, pode ser o momento de reconhecer o inimigo que estará à frente.
A grande provação é o momento em que o protagonista se vê diante de um grande obstáculo, algo que outrora acreditaria insuperável, passando por uma experiência de superação nunca vivida, como vencer a morte ou derrubar uma besta que julgava invencível. Nesta fase sempre fará com que tudo pareça perdido e, ao transpor tal obstáculo, o herói se agiganta, vencendo o mal e se mostrando maior que aquilo que temia.
Antes que o leitor acredite que a fase de provação seja algo exclusivo das obras de ficção, é preciso lembrar das vitórias sobre grandes obstáculos, como as legiões romanas nas batalhas de Alésia, os gregos em Salamina e os portugueses em Diu, situações em que um lado, mesmo diante de flagrante desvantagem, acaba por subjugar o franco favorito, vencendo assim a provação que era vista como um obstáculo intransponível. As batalhas mencionadas provam que os desafios podem ser superados, bem como, há sim um momento de provar o valor de um indivíduo ou de uma civilização.
Chegamos agora na fase que é chamada de recompensa, momento em que o protagonista, superando o grande obstáculo que estava em seu caminho, sendo, justamente, a fase de engrandecimento, na qual o herói assume que é um vencedor, sagrando-se como um campeão, logo em seguida, dará início à fase da volta ao lar, que parece, erroneamente, o fim de toda a jornada, todavia, simboliza um período de reflexão e decisões sobre o que fazer após a jornada.
Surge, então, o momento de ressurreição, no qual o mal ressurgirá e colocará em risco tudo aquilo que é caro ao herói. Isso pode ocorrer como a volta daquilo que já foi vencido, talvez mais forte, ou mesmo, de um novo perigo que, ofuscado pelo primeiro obstáculo, era desconhecido pelo aventureiro. Podemos imaginar, metaforicamente, que o mal se manifestava em um tirano, que após sua deposição, surgem outros tantos tiranos, de forma inesperada e investidos de um poder ainda maior, cuja missão seja perpetuar o mal que fora extirpado, ou mesmo, reconduzi-lo ao poder.
A ressurreição se traduz na ideia de não baixar a guarda até que todo o mal seja derrotado, seguindo a máxima de não comemorar a vitória antes da certeza. Cada indivíduo deve reconhecer que o mal é multifacetado e que pode voltar sempre, no âmbito da civilização contemporânea, é fácil lembrar de um episódio, quando a humanidade acreditava se ver livre do maior mal da atualidade.
A queda do Muro de Berlim, também chamado de Muro Antifascista, que serviu para aprisionar o leste da Alemanha no mundo socialista, em 1988, fez com que muitos acreditassem que a humanidade estaria livre do mal, que simbolizava a queda do socialismo, entretanto, foi apenas uma vitória momentânea, pois o mal se reinventava e já havia permeado a civilização ocidental, corrompendo seus valores e incutindo sua visão distópica no imaginário dos homens livres.
O socialismo, que caíra podre na União Soviética, tornou-se uma mitologia que seduziu os mais fracos e corroeu as sociedades ocidentais com a falsa promessa de um mundo livre, igual e justo, todavia, semeou seu mal através da desinformação, criando homens fracos e grupos que nada mais são que a reinvenção dos antigos sovietes, que escravizam indivíduos fragilizados que buscam no sentimento de pertencimento refúgio para problemas, em sua maioria, artificiais.
O que importa no momento é compreender que, mesmo após de sua suposta queda, o socialismo se reinventou, ainda mais forte e perigoso, pois, permeia a sociedade como uma doença e, quando necessário, nega sua própria existência. A fase de ressurreição do mal, pode ser muito bem exemplificada assim, ou em outros tantos episódios da história da humanidade.
Finalmente, a jornada do herói chega ao seu fim, com a fase que algum chamam o retorno com o elixir, mas, chamaremos de a consagração, uma vez que, no final de tudo, o protagonista é aclamado o herói, vencedor sobre todo o mal e cumpre o seu papel na trama. Assim como cada um de nós faz em toda sua vida, como uma jornada maior, ou em suas diversas fases, como pequenas jornadas que se apresentam na forma de capítulos da principal.
Mesclando a ideia de que uma civilização, uma sociedade, um indivíduo, ou mesmo, uma célula guardam uma relação, em sua trajetória, atravessando diversas jornadas, seja diante dos desafios ou de toda sua existência, concluímos que a toda a existência de uma célula é um fragmento da existência do homem que ela compõe, bem como, cada indivíduo possui sua própria jornada completa, que não deixa de ser uma fração da jornada de sua sociedade, o mesmo vale para a civilização e a maior de todas as jornadas, a da humanidade.
Se consideramos a história da humanidade, percebemos o quão pequena é nossa participação na grande jornada, entretanto, a medida que cada um é importante, nossa própria história é uma parte indispensável para o todo. Assim sendo, propõe-se que cada um olhe ao seu redor e perceba que em toda essa grande jornada, qual o momento em que a humanidade vive, que a civilização ocidental está passando, que nossa sociedade enfrenta e que cada um de nós se encontra.
É necessário compreender se você já recebeu o chamado, se sua jornada começou e qual fase você se encontra, aparentemente o Brasil já despertou para sua missão, para grande parte dos brasileiros, tal fase já ocorreu, arrisco dizer que Olavo de Carvalho fez o papel do mentor para muitos no que diz respeito a jornada política atual, bem como, Jair Bolsonaro cruzou o limiar em direção ao desconhecido, entretanto, há de se reconhecer que ainda estamos longe de uma vitória sobre a grande provação e que ainda podemos esperar pela ressurreição do mal no futuro.
Acreditamos que estamos atravessando momentos sombrios, caminhando em meio às trevas, e, por isso, é necessário que nos mantenhamos fortes e resilientes, sabendo que, cada um que já abriu os olhos têm a missão de despertar os demais, sendo luz em meios à escuridão, sendo um bastião da verdade quando a mentira corroeu a alma dos mais fracos, estendendo-lhes a mão para que possam emergir das sombras em que foram jogados.
Resta-nos cumprir o papel na jornada, sendo protagonistas de nossas vidas e fragmentos indispensáveis do mundo, salvando a nós mesmos salvaremos muitos outros e somente assim haverá luz. Por enquanto, devemos sobreviver em meio ao caos e seguir andando em meio às trevas, acreditando que o inverno não durará para sempre.
Tal como o herói que supera a grande provação enfrenta o mal ressurgido, cada um de nós precisa assumir que momentos de escuridão nos provam para que sejamos mais fortes, cumprindo um papel cujo real propósito está além de nossa capacidade de compreensão. A vitória se chegará ao seu tempo, apenas lutemos por um mundo melhor.
“Referi-vos essas coisas para que tenhais a paz em mim. No mundo haveis de ter aflições. Coragem! Eu venci o mundo”.
João 16:33
Artigo publicado na Revista Conhecimento & Cidadania Vol. II N.º 26