A hipertrofia autofágica do ativismo judicial
O conceito de justiça não é uma ficção, está presente na existência humana e pode ser associado ao fato de ter o homem consciência, portanto, podemos admitir que um ser racional, necessariamente, adquire a noção de sua existência, não reagindo instintivamente ao que percebe. Tal ser, racional, abandona a visão superficial para tentar entender o mundo que o cerca.
Naturalmente, busca-se compreender a natureza humana e tudo que a cerca, assim, o próprio instinto de sobrevivência passa a ser ponderado, posto que, é reflexão sobre o mundo busca uma explicação racional para o todo. O direito natural nada mais é que a observação de algo que está presente no ser humano e sua interpretação à luz de uma compreensão, baseia-se na moral que define o justo e o injusto, tem como base a busca pelo equilíbrio.
O direto positivo, por sua vez, tem a missão de dar corpo através da norma ao que se pretende alcançar através do Direito, especialmente o natural, não deveria ter como missão criar ou extinguir direitos através da redação de textos legais, sendo sua função precípua transcrever o direto natural para evitar sua volatilidade, dificultando seja a norma distorcida ao bel prazer do julgador.
Um ponto importante é a generalidade de uma lei, pois, ao legislador não se faculta a elaboração de uma norma destinada ao benefício ou prejuízo de um determinado indivíduo, devendo este, como titular de uma procuração inominada representar tanto seus eleitores quanto os demais cidadãos.
Estaríamos diante de uma sociedade despótica se as leis fossem redigidas conforme o apreço do legislador pelo destinatário do direito, o favor e o revanchismo tornar-se-iam as engrenagens da atividade legislativa. A norma ideal tem um destinatário futuro, alguém que à época de sua definição, não era alcançado por seus efeitos e, ainda assim, quando o advento da lei altera a condição de quem já estava na situação objeto da mesma, deve-se ter em mente que tal inovação não é direcionada apenas aquele individuo.
Não há como falar em justiça quando o tratamento entre indivíduos em uma mesma posição jurídica, em determinado ordenamento, é excessivamente díspar e desconexa, ao ponto de, mesmo sendo diante de posições jurídicas semelhantes não se observa referência alguma entre ambos, permitindo a liberdade total do criador da norma ou do julgador.
As sociedades antigas reconheciam a importância essencial do sentimento de justiça no cerne da humanidade, tanto que, mesmo as civilizações da idade antiga, politeístas, tinham uma visão divina da justiça como sendo um valor fundamental, tal simbolismo se refletia nos panteões daqueles povos. A justiça era, em considerável parte delas, atribuída a uma divindade de alto escalão, ocupando um posto digno daquilo que era tido como de relevância ímpar para a sociedade.
Os egípcios creditavam a justiça à deusa Maat, que também era considerada a senhora da verdade, restando evidente que, há milênios, o ideal de justo e a verdade andavam de mão dadas, sendo indissociável uma coisa da outra. A mentira não se coaduna com o valor essencial do ser humano que é bom, logo, não há como ser justo e falso.
Entre os nórdicos, o deus Forseti cumula a justiça e o conhecimento, atribuindo à mesma divindade dois fatores indispensáveis, haja vista que, mesmo nos dias atuais o sem conhecer é impossível julgar ou legislar.
Nota-se que a justiça, como ideal, desde a antiguidade, está associada ao conhecimento e a verdade, sendo esta a legitimidade atribuída à própria justiça e seus arautos.
Os gregos, em sua influente mitologia, consideravam Themis, ou Têmis, como a deusa da justiça e conselheira do senhor do Olimpo. Filha de Urano, o céu, e Gaia, a terra, a titânide traduzia o ideal de justiça, como algo sobre-humano, metafísico, assim sendo, está além da simples compreensão do homem, mas era um valor natural. A associação com da divindade e o Direito natural é algo que decorre da essência da mesma, sendo claro que, na concepção do povo grego, já era possível perceber a importância da justiça como ideal.
“Considerada a deusa da Justiça era representada como uma divindade de olhar austero, não tinha os olhos vendados inicialmente, mas sempre esteve junto da balança que simboliza o equilíbrio e a espada, como o poder.
No século XVI, os alemães, colocaram uma venda em Thêmis para indicar a imparcialidade, ausência de preconceitos.”
A divindade ocupava uma das posições mais importantes do Olimpo, sentada ao lado de Zeus, de quem fora a segunda esposa e conselheira, simbolizando a moral que sustentava a justiça.
“Na mitologia grega, Têmis é a personificação das leis divinas, reconhecida pelo Costume e pela Lei. Em contraste à justiça, leis e decretos humanos. Contudo, é vista como a deusa guardiã dos juramentos dos homens e das suas regras. Era comum ser mencionada durante os juramentos dos magistrados.
Pela representatividade, ela possui três subsistências: deusa da ordem natural, deusa de profecia e deusa da ordem moral. Além disso ela foi inventora das artes e administrava sobre as relações adequadas entre homem e mulher, ou seja, a base da família. Ela também presidia sobre juízes que também eram chamados de themistopóloi (servos de Thêmis).”
Da união entre Zeus e Themis descendem as moiras e as horas, dentre as quais é imperioso destacar Dique, também grafada como Dice ou Diké, está que, a priori, pode criar uma confusão, uma vez que, também é uma divindade associada à justiça no panteão grego. É essencial distingui-la de sua mãe, pois há uma grande diferença entre Themis e Diké, sendo possível atribuir a primeira a ideia de justiça como ideal ou direito natural enquanto a sua filha simbolizava a justiça no caso concreto ou direito positivo, como aponta Rodrigo Cerveira Cittadino.
“E como associar Têmis e Dique às correntes, no Direito, do jusnaturalismo e do juspositivismo, respectivamente? Em primeiro lugar, é de bom tom esclarecer que tal associação configura tão somente um esforço de se identificar caracteres comuns entre as deusas e as perspectivas jurídicas. Em segundo lugar, importa que definamos estas. O jusnaturalismo defende que, além e acima do direito escrito, há o Direito Natural, cujas normas servem como parâmetro da justiça perfeita e devem, idealmente, nortear o legislador na elaboração do ordenamento jurídico de seu Estado.” “O adjetivo natural… indica que a ordem de princípios não é criada pelo homem e que expressa algo espontâneo, revelado pela própria natureza.” (Reale, 2008, p. 375) A fundamentação do Direito Natural tem variado ao longo da História: para os estóicos, era o equilíbrio cósmico; para a teologia medieval, a vontade divina; no Iluminismo, a razão. Hoje, impera a ideia de que o Direito Natural advém da natureza humana; significa que, simplesmente por ser humano, o homem possui direitos inalienáveis, estejam eles elencados ou não numa constituição. Já o juspositivismo rejeita a existência de um Direito Natural. “Para o positivismo jurídico só existe uma ordem jurídica: a comandada pelo Estado e que é soberana”; o Direito Natural é tido como pertencente à esfera da metafísica, e portanto é desprezado, visto que não pode ser cientificamente apreciado (Reale, 2008, p. 374, 384-385).”
Pode-se, ante a análise do mito, concluir que aquela antiga civilização já concebia a ideia de um ideal de justiça, puro e divino, e, por outro lado, uma justiça humana, que deveria buscar o ideal, mas que era limitada à compreensão dos homens. Ironicamente, alguns conceitos percebidos pelos povos da idade antiga parecem ter sido perdidos com o passar do tempo. Continua Cittadino.
“Por fim, as comparações. O Direito Natural é eterno e universal; assim como Têmis, cuja influência se protrai no tempo rumo ao passado (pois é Titânida) e ao futuro (pois é divindade oracular) e que atua sobre o âmbito dos mortais, dos deuses e do Universo em geral. O Direito Positivo restringe-se aos limites do Estado. À semelhança de Dique, que se volta estritamente para os assuntos dos homens e está intimamente concatenada ao nómos; logo, a deusa cessaria sua manifestação com o fim da vida humana ou da vida da pólis; a correlação aqui se dá por intermédio da cidade-Estado grega, que, por ser a unidade política principal da Hélade, pode equivaler em essência ao Estado, central no cenário internacional presente.”
Não se pode atribuir ao cristianismo está amnésia coletiva, pois, a distinção entre o divino e o mundano também se apresentam nos ensinamentos legados à cristandade, mas àqueles que ousaram ser mais que divino, presumindo-se iluminados, recai o fardo de levar ao esquecimento o ideal de justiça.
Por certo que a justiça como valor se reflete no mito de Themis, tal qual, a justiça dos homens e, portanto, o Poder Judiciário, personifica Diké. Sendo assim, poder-se-ia acreditar que a titânide seria incorruptível, ao passo que sua fila estaria mais vulnerável aos descalabros dos arautos da justiça, entretanto, a divindade é tida como defensora da verdade, não se afeiçoando aos magistrados que, por ventura, afastam-se de sua nobre missão para seguir um caminho de trevas.
Diké lamenta-se perante seu pai quando aqueles que deveriam a personificar corrompem o Direito e afastam-se da verdade, não sendo conivente com a pútrida prática de macular a justiça por magistrados, posto que, estes, mais que todos, devem honrar suas togas, vestes que deveriam tratar com sacralidade de que tem o poder de falar em nome da divindade, a chamada jurisdição.
Em se tratando do senhor do Olimpo, este se define como o poder, a ação, enquanto a mãe de Diké adota uma postura passiva, sendo invocada ao socorro quando necessária a valoração do certo, justo e verdadeiro, assim como sua filha deve acolher a verdade como pilar. Aos juízes é imperioso manter-se equidistante do poder manifesto, da ação daquele que governa, deixando assim de se imiscuir na propositura para se reservar ao torno de Themis.
Todo magistrado, a priori, personifica Diké, devendo sempre ter a divindade em suas ações e Themis como norte, pois, tentar separar uma da outra resultará no fatídico fim de ambas. Muitos associam a deusa romana Iustítia a uma junção das duas figuras em uma, talvez para a civilização antiga da península itálica, tal associação fosse uma forma de unificar de forma irrevogável a justiça como ideal e aquela que deve ser promovida, tornando as duas figuras míticas gregas uma única coisa no panteão romano.
Por outro lado, a teoria de que a deusa Iustitia aglutinava Themis e Diké em uma só, pode ser compreendida como uma corrupção do imaginário grego, fazendo com que Roma perdesse a capacidade de distinguir uma coisa da outra ou, ainda mais grave, não fosse realmente uma sociedade apta a entender que existe o plano da justiça intocado que preserva o valor essencial do justo. Não parece crível a última hipótese, pois, é nítido como o Direito romano tinha como norte a justiça como ideal, ainda que, aplicasse o Direito no plano real.
Não obstante, a busca pela aproximação entre a justiça imaculada e aquele que serve aos homens, por eles sendo praticada, que pode ter sido a causa da sugerida aglutinação das duas divindades gregas na figura do panteão romano, fazendo de Iustitia uma representação absoluta da justiça, daí o nome ter significado aplicado em ambos os casos. Poder-se-ia admitir que Diké, amante da verdade, não se corrompe ante as ações dos magistrados, haja vista, que os juízes precisam afastar-se da divindade para subverter sua missão, deixando de inspirar-se em Themis e, inevitavelmente, extraindo Diké de sua alma.
O mito como recurso para compreender o homem torna-se um instrumento mais que necessário, todavia, pode surgir a reflexão de qual seria a correlação entre as duas divindades e o ativismo judicial, posto que, se há uma ideia de justiça divina incorruptível e a justiça concreta também o seria, não seria plausível invocar tal mito para compreender os males do ativismo.
Preliminarmente, é essencial constatar que a judicialização da política é um dos desdobramentos do ativismo judicial, pelo simples fato de que um Poder Judiciário residual, que socorre àqueles em posições jurídicas de vantagem, não se coaduna com ações proativas que tentam conduzir a humanidade, pondo-se a direcionar rumos de uma sociedade em detrimento de sua precípua missão de fiador da paz, que deve ser a tábua de salvação aos atirados nas trevas da injustiça.
Para Pedro Santoro de Mello, o ativismo judicial e a judicialização da política são institutos dissociados.
“Portanto, pode-se notar que o ativismo e a judicialização são práticas distintas constantemente praticadas pelo Judiciário, sendo aquela caracterizada pela atuação do Judiciário além da legislação, sem respaldo legal e promovendo uma ampliação das normas jurídicas a partir de suas interpretações, enquanto que esta se evidencia pela ação do Judiciário além de suas competências, interferindo assim nas decisões políticas dos demais poderes, fazendo com que questões políticas de grande repercussão nacional ao invés de serem analisadas pelo Congresso Nacional ou pelo Poder Executivo, passem a ser decididas pelo Poder Judiciário. É válido ressaltar que ambos os fenômenos são praticados em diversos ordenamentos jurídicos distintos e são fatores contribuintes para o crescimento do Poder Judiciário dentro do Estado.” (Mello, Pedro Santoro de; A Judicialização da Política no Brasil: os Desafios, os Limites na Atuação do Judiciário e a Defesa Dos Princípios Constitucionais; Âmbito Jurídico; 2019).
Apesar da possível separação entre ambos, resta evidente que não há como existir a judicialização da política sem o ativismo judicial, pois um tribunal que não ultrapassa seus limites jamais servirá de palco para o segundo.
Ao Poder Judiciário cabe socorrer os indivíduos ante o mal perpetrado pelo poder e da covardia de seus pares, não, há dentre as missões dos magistrados conduzir a sociedade, bem como, ser o agente que exprime a vontade de um povo. A legitimidade de tal poder reside em sua tecnicidade e imparcialidade.
Aos que julgam é necessário, ainda que seja impossível, despir-se de suas paixões para laborar sob a égide dos valores construídos e solidificados em uma sociedade, privando-se de agir como representante, para socorrer aqueles que se veem desamparados. Tenta-se justificar ativismo judicial perante os indivíduos como forma de levar a justiça aos homens, supondo que, estes estariam refém da inércia dos que estão no poder, assim, o Poder Judiciário promoveria a justiça através da ação, não esperando para solucionar os problemas à posteriori.
Não existe premissa mais equivocada, justamente, pelo fato de que, aquele que segura a balança não pode pesar para um lado ou não haverá justiça e sim vontade.
Se, no Olimpo, Zeus simbolizava o poder divino, reinando sobre todos, Themis não poderia agir como se o Cronida fosse, sob pena de ser parte da ação tendo sua balança pendendo para um lado antes mesmo de colocar os pesos em ambos. Diké, como visto, não pode se dissociar de sua mãe, haja vista que, quanto mais agir como seu pai, mais tornar-se-á parcial e alheia à sua missão.
O ativismo judicial é uma mazela contemporânea que promete uma Justiça atuante e capaz de solucionar os problemas de uma sociedade, substituindo os demais poderes constituídos e fazendo com que o poder que deveria repousar inerte, adira à pautas ideológicas que, por vezes, não encontram abrigo no seio da sociedade.
Tal nefasta prática resultará na hipertrofia autofágica do Poder Judiciário, mas não antes de colapsar os demais poderes, criando uma sociedade distópica que se envenenou acreditando tomar uma cura milagrosa, sem buscar entender seus efeitos colaterais. O povo, ao ser guiado por quem se desvia de sua missão, terá como certa a trajetória para o abismo.
Nem sempre os praticantes do ativismo dar-se-ão conta do mal que fazem, em alguns casos cegam-se para a realidade de bêbedos pelo poder do néctar da ambrosia, acreditam que realmente são capazes de guiar os rumos do mundo por se tratarem de seres melhores que os outros. Alguns, de fato, são algozes conscientes tomados pela ganância e por uma fé revolucionária, contudo, há juízes que se tronam incapazes de reconhecer o quão danoso é tentar fundir Themis e Zeus em uma só figura.
Dos arautos do ativismo judicial ascende a aristocracia das togas, deixando de lado sua missão de socorrer para buscar um protagonismo antagônico com a segurança que deveriam refletir aos homens. Os julgadores perdem a credibilidade ao passo que deixam de figuram como técnicos equidistantes do palco dos acontecimentos para, lançando-se ao mesmo, travarem suas próprias batalhas e trocarem suas togas neutras por estandartes que os colocam como interessados.
A adesão às agendas internacionais e a renúncia constante das fontes do Direito para enveredar pela propositura política, ora legislando, ora governando, conduz, inevitavelmente o Poder Judiciário a uma hipertrofia, engolindo os demais poderes por acreditar que é o detentor do conhecimento e bastião da verdade. Uma premissa tão equivocada, senão destrutiva, que ignora o mito no qual tanto Themis quanto Diké não se imiscuíam nas tarefas dos demais deuses e titãs, haja vista a necessidade de manterem-se imparciais, desta feita, presume-se que detentoras do conhecimento e amantes da verdade, tinham a concepção que o melhor a ser feito era deixar a ação para os protagonistas.
Ninguém credita um julgamento justo a um dos envolvidos na contenda e, por tal motivo, um judiciário que está envolto de forma proativa em determinados temas, não goza de legitimidade, de maneira que, o crescimento desenfreado de tal poder, engolindo os demais, será, inevitavelmente, a sua ruína, pois, o reduzirá a um órgão parcial, atécnico e desmoralizado. A máxima de Orwelliana de que
“Todos os animais são iguais, mas alguns são mais iguais que outros”. (Orwell, George; A Revolução dos Bichos (Animal Farm); Reino Unido; 1945)
A fé depositada na justiça é, necessariamente, resultado de sua postura distante da seara política, havendo no imaginário de cada indivíduos a esperança que o Poder Judiciário lhe trará a justiça quando tudo mais lhe for subtraído, por tal razão, não há motivo para se socorrer de um órgão que tem sua balança retorcida pelas suas ações, deixando evidente que não amparará aos que não comungam de sua visão, ainda que distorcida, de mundo.
Não raro os indivíduos deixarem de buscar a justiça através do Poder Judiciário por terem a, por vezes justa, impressão de que os julgamentos serão enviesados pelas crenças do julgador ou da instituição. A postura ativa do judiciário macula não só os julgados, mas a fé da sociedade em tal poder, quando se vislumbra uma face que pode ser considerada como declaradamente tendenciosa, essa que tenta se “autojustificar”, ante a uma suposta fragilidade a ser protegida, assumindo postura flagrantemente política ideológica e, por vezes, fazendo até mesmo propaganda de suas visões.
O cidadão não pode acreditar que um órgão possa lhe socorrer quando o mesmo assume uma clara postura em relação a determinado tema, restando evidente que sua demanda não será acolhida por questões de convicção do órgão julgador, que independe dos comandos legais, dos valores da sociedade que se insere ou da vontade do povo.
“Neste contexto, caberia ao Poder Judiciário somente defender e assegurar direitos, agindo peremptoriamente para que ninguém – cidadão ou Estado – atente contra ou afaste qualquer direito previsto em Lei e, principalmente, na Constituição. É o Judiciário, enquanto Poder do Estado, que garante a aplicação da Lei. É nessa ótica que o Poder Judiciário pode ser considerado como uma instituição democrática.
Porém, não caberia a este Poder conceder, ampliar ou criar benefícios, ou mesmo criar leis abstratas e gerais. Assim o fazendo, a respeito da vontade da maioria consubstanciada na aprovação de leis editadas por seus representantes eleitos (ou mesmo na omissão da aprovação de determinada lei que não espelhe a vontade popular), está sim agindo o Poder Judiciário como uma instituição não democrática.” (Ceroy, Alexandre Meinberg; Quem Realmente Defende a Democracia?; Revista Conhecimento & Cidadania Vol 10, Rio de Janeiro; 2022)
Ao subtrair do governante a direção das políticas públicas ou do legislador a capacidade de expressar a vontade do povo, solapando a maior lei da nação e sustentáculo de todo o ordenamento jurídico pátrio, o Poder Judiciário não está violando a prerrogativa do poder que, aparentemente, fora alvo de sua ação. Em verdade, a única vítima é o real detentor do poder que, no caso de uma república, deveria ser o povo.
O mandatário, seja o governante ou o parlamentar, presenta aquele que o investiu na missão, logo, o verdadeiro soberano é o povo, portanto, avançar em direção dos mandatários é subtrair do real senhor, que confiara aos seus representantes, o poder. O ativismo judicial torna um poder residual, que deveria manter-se passivo e legítimo, um usurpador da soberania popular para fazer-se governo juristrocrata que se impõe pela força de seus desmandos.
“Não se trata de mera violação formal, portanto, não é necessário verificar se tal princípio é reconhecido no ordenamento jurídico colombiano, salvo se aquele país for assumidamente uma ditadura, como toda juristocracia o é. A judicialização da política e o ativismo judicial não subtraem dos parlamentares o poder de legislar ou do governante de dirigir a máquina pública, em verdade, retira a vontade do povo ao entregar para outrem a capacidade de escolher pelos cidadãos, a verdadeira vítima de tal nefasta prática é justamente aquele que concedera um mandato aos membros do legislativo para que manifestem sua vontade, bem como, o fizera com o governante, esperando que este adote as políticas públicas que lhes são caras.
Utilizando-se de falsas premissas, um determinado grupo impõe sua ditadura sobre a população, em um verdadeiro ato antidemocrático, agentes políticos ora derrotados e magistrados que comungam de sua visão de mundo, ainda que distópica, usurpam descaradamente o mandato alheio por se auto intitularem como um secto supra-humano que tem o poder-dever de conduzir os rumos da nação.
A ideia de representantes eleitos em uma democracia reside, justamente, no fato de que estes devem representar a vontade do povo, real soberano, de maneira que, quando uma determinada prática é reprovada em uma sociedade, em tese, criam-se normas para coibi-la, em sentido contrário, são incentivadas condutas tidas como desejáveis. Por tal razão, um projeto de lei que não é aprovado reflete, ressalvados os casos distorcidos, naquilo que os cidadãos esperam de seus mandatários, posto que, não atendendo tais expectativas sofrerão a rejeição em um futuro pleito eleitoral.
Uma norma que não tem sucesso no processo legislativo, a princípio, não é bem-vinda no ordenamento jurídico, sendo seu forçoso ingresso neste um atentado contra a democracia, haja vista, que em tal modelo o povo não é, tão somente, um elemento do Estado, mas a razão de existir do Estado, pois este, é servo daquele, não sendo, em nenhuma hipótese, o seu detentor. Dos elementos que constituem esta figura, são indispensáveis o território em que se exerce a soberania, entretanto, em si falando de democracia, o povo é o senhor do Estado, e não o contrário.” (Costa, Leandro dos Santos; O Pior Crime do Mundo; Revista Conhecimento & Cidadania Vol 7; Rio de Janeiro; 2022)
Voltando ao mito de Diké, assumindo que os magistrados seriam a corporificação da divindade, o ativismo judicial e, consequentemente, a judicialização da política acabam por desfigurar a filha de Zeus e Themis, afastando-a de sua mãe para dar-lhe um trágico destino.
Diké seria o alvo da hipertrofia, a medida que subtrai dos demais deuses do panteão suas atribuições por se acreditar como um ser justo e mais indicado para quaisquer que sejam os desafios, rebelando-se contra a postura, que entende, letárgica de sua genitora para propagar os ideais de justiça pelo mundo.
A divindade afasta-se de Themis e busca sufocar seus pares no panteão grego, suprimindo a violência de Ares, os arroubos de Poseidon, a luxúria de Afrodite, o ciúme de Hera, a frieza de Hades e tudo aquilo que pode causar desiquilíbrio conforme sua visão cega e arrogante de mundo ideal, tornando-se o mal que deveria combater.
Não percebe, ou não quer ver, que quanto mais se afasta de Themis, a justiça como ideal, Diké se dissocia de sua existência, justa e verdadeira, metamorfoseando-se, ainda que de forma inconsciente, na em sua antagonista, Adikia, refletindo a injustiça e a mentira e destruindo-se em uma ação autofágica, O crescimento desordenado da divindade acaba por fazer com que se devore para saciar sua fome pelo poder.
Desmoralizada pelas ações de seus arautos ilegítimos, Diké se destrói gradualmente em uma busca por solucionar aquilo que não lhe é afeto, sufocando todos que a cercam e sorvendo seu próprio sangue, que se tornou veneno, uma vez que, ao metamorfosear-se em Adikia sua essência lhe é nociva. Não podendo se lamentar ao Cronida, pois mesmo o senhor do Olimpo jaz em seu trono, ferido pela espada que Diké ainda impunha e branda contra tudo aquilo que se move.
Cega e recusando-se a parar, resta à divindade socorrer-se da justiça que não se corrompera, voltando, como o filho pródigo aos pés de Themis para então perceber que aquilo que acreditava ser a letargia de sua mãe, era, na verdade, a sabedoria em reconhecer que cada qual tem seu papel e não se pode promover a salvação deixando de cumprir a sua missão.
Os magistrados que maculam a justiça, ainda que movidos pela boa intenção, avançando sobre os mandatários, na verdade sobre a vontade do povo, ampliam seu poder e destroem no ao mesmo tempo, cada vez mais audazes e ilegítimos, hasteiam suas bandeiras e condenam a justiça ao infortúnio destino dos que se corromperam ante o poder.
Por outro lado, sempre haverá esperança, por certo que muitos que honram suas togas mais que bandeiras ideológicas trarão consigo a justiça como ideal e o judiciário como tábua de salvação dos relegados, mantendo Themis como norte e Diké em seus corações.
A justiça divina e imaculada sempre prevalecerá e abrigará aqueles que forem justos, assim, quando Diké estiver na mais profunda sarjeta, poderão aqueles que lhe corporificam se levantar em oposição ao ativismo que a consome, resgatando sua dignidade e conduzi-la aos braços de sua mãe, Themis, que a acolherá tal como um filho pródigo, renascendo assim a justiça dos homens como deve ser, restando aos arautos de Diké preservá-la e a todo cidadão defendê-la.
Resgatar a justiça é o dever todo jurista para consigo e com o mundo.
Artigo publicado na Revista Conhecimento & Cidadania Vol. III N. 44 – ISSN 2764-3867