Escravismo à Brasileira

Escravismo à Brasileira

Continuação

Neste artigo continuaremos a tratar sobre a questão da escravidão no Brasil e suas características. A partir de agora buscaremos nos colocar em meio à sociedade brasileira do século XIX e entender qual o papel desempenhado pelos escravizados no contexto daquele período de transformações para o Brasil.

A antiga rua do Valongo, localizada no Rio de Janeiro e aberta no século XVIII, iniciava no Cais do Valongo e seguia em direção à região mais ao centro da cidade. Posteriormente chamada de rua da Imperatriz, na última década do século XIX recebeu seu nome atual, rua Camerino. Esta rua tem importância na história do Rio de Janeiro por ter abrigado o mercado de escravos da cidade, desde sua transferência do Largo do Terreiro da Polé (Praça XV) ainda em meados do século XVIII. Lá eram recebidos, preparados e exibidos à venda todos os cativos destinados aos mais diversos fins, tanto na cidade do Rio quanto nas regiões mais ao interior.

Estima-se que cerca de um quarto dos que eram enviados ao cais do Valongo chegavam mortos ou morriam em poucos dias, mais um quarto se encontrava doente ou bastante debilitado. Os sobreviventes eram vendidos de acordo com sua condição física após o período de quarentena e “engorda”, e também de acordo com suas “prendas e feitios”, ou seja, habilidades e aparência física. O cenário descrito pelos viajantes em trânsito pela cidade, quando se referiam aos locais de exposição e venda de escravos era desagradável, mas do ponto de vista dos residentes na cidade, tudo funcionava qual um estabelecimento como tantos outros. Apesar do que se poderia chamar de “perdas” inerentes ao “negócio” (do ponto de vista comercial), a lucratividade era alta, muito alta. Cabe reiterar o que afirmamos no artigo que precedeu a presente continuação: o que estamos buscando é a inserção do leitor no pensamento, nos usos e costumes da época e para tanto é preciso apresentar os fatos tais como eram e não como os vemos hoje.

De forma bastante resumida, podemos apresentar duas formas de exploração do trabalho escravo naquele período: os escravos rurais e os escravos urbanos. Quanto aos primeiros, suas vidas e mortes já vem sendo apresentadas há muito tempo em obras de cinema e televisão. É fato que sua expectativa de vida era baixíssima, na maioria das vezes não ultrapassando os 25 anos de idade, sendo expostos a jornadas intensas de trabalho, castigos, alimentação limitada, e locais de descanso precários. Sendo fatos historicamente incontestáveis, são inegáveis. Todavia, não podemos nos furtar ao dever de lembrar que, os fatos mais chocantes e excêntricos sempre chamam mais a atenção, ganhando mais destaque. Assim, é fato também que mesmo os escravos rurais, eventualmente recebiam de seus “senhores”, pequenas partes de terra de menor interesse econômico para que ali pudessem plantar em seu único dia de descanso (o domingo), desde que cumprissem seus deveres religiosos comparecendo à missa, em igrejas destinadas aos negros. Também o tipo de serviço rural não estava limitado a uma única modalidade, assim como variavam as formas de trato de cada senhor para com seus escravos. As generalizações facilitam a compreensão, mas podem distorcer a realidade ao mesmo tempo em que buscam atingir seus fins.

Quanto aos escravos urbanos, são menos conhecidos por não experimentarem realidades tão dramáticas quanto os escravos rurais. Dentre os tipos historicamente conhecidos, existiam os escravos de ganho, que mesmo estando ligados a um “senhor”, ofereciam sua mão de obra a quem dela precisasse, mediante pagamento que era repassado diariamente ao seu “senhor”. Assim, carregadores, barbeiros, dentistas, vendedores ambulantes e mecânicos em geral (o termo mecânico era atribuído genericamente às tarefas de artífices) eram vistos comumente oferecendo seus serviços nas estreitas ruas do Rio de Janeiro colonial. Pelo tipo de ofícios a que se dedicavam, tendo as ruas como local de exercício, seria de se imaginar que as fugas se verificariam em massa e diariamente. Todavia não era essa a realidade. As pesquisas em jornais de época mostram que as fugas ocorriam no cenário urbano, mas eram a exceção à regra, geralmente ligadas aos abusos dos “senhores”. Para além dos escravos de ganho, os domésticos também eram muito comuns. Se estes últimos compartilhavam da intimidade dos lares urbanos ainda mais proximamente que os de ganho, teriam mais possibilidades de atentar contra a vida de seus “senhores” e iguais possibilidades de fuga. Mais uma vez as fugas eram as exceções à regra. Os castigos físicos existiam, mas sequer se aproximavam do modelo estereotipado reproduzido comumente. Os serviços urbanos dependiam fundamentalmente da confiança daquele que “possuía” em relação ao “possuído”. Os castigos exagerados destruiriam aquela confiança e tornariam o serviço de ganho inviável.

Para os escravos urbanos, a possibilidade de guardar recursos repassados pelos senhores ou mesmo desviados dos ganhos diários, oportunizava o acesso à compra de suas alforrias ou de outros. As compras podiam ocorrer individualmente ou por algo análogo à cotização de recursos com o fim de libertar um membro cotista.

Outro ponto que causaria estranheza a quem tivesse uma visão romantizada da questão escravista seria o fato de que mesmo os alforriados, aqueles que tivessem recebido ou comprado sua liberdade com recursos próprios ou por ação de algum benfeitor ou grupo, mesmo estes quando podiam, tornavam-se também proprietários de escravos. Ainda mais estranho pareceria ao examinar o caso do escravo Manoel Joaquim Ricardo que, ao morrer em 1865 era “proprietário” de outros vinte e oito escravos e quatro casas. Sua condição de escravo não o impedia de possuir outros na mesma condição que a sua. Por que Manoel não teria buscado antes a sua própria liberdade? A posse de escravos representava mais em termos de ascensão social que a própria liberdade em si mesma. Óbvio que a compra de escravos por outros escravos não era possível a todos, mas era uma possibilidade que merece ser incluída no campo de análises.

As relações sociais construídas no Brasil desde o início da exploração escravista, que acompanharam todo o desenvolver da economia colonial, tiveram ainda mais um elemento singular, a miscigenação. Portugal contava com cerca de um milhão e meio de habitantes no início do século XVI. A ocupação e a interiorização da colonização dependeram muito da miscigenação e das relações que portugueses estabeleceram. Quando aqui chegavam, os homens portugueses vinham geralmente desacompanhados e as jovens portuguesas que imigravam era bastante raras. A ideia estereotipada do europeu português adentrando impetuosamente as matas durante as “entradas e bandeiras” não poderia estar mais afastada da realidade. Os bandeirantes eram em geral guiados por mestiços, associados aos índios que conheciam como ninguém os caminhos e riscos da jornada rumo ao interior.

O racismo até o final do século XIX não era um fenômeno coletivo no Brasil, tampouco se tornou depois. Nem mesmo em sua suposta forma “estrutural” como defendem alguns setores de movimentos raciais. O racismo não faz parte coletivamente do imaginário brasileiro, pois, a vacina que tem imunizado a coletividade de nosso povo é justamente a reunião de etnias, culturas e crenças sobre um mesmo solo. A gênese desse câncer moral que é individualmente constatável em alguns pobres de espírito, chegou ao Brasil sob o título científico de Eugenismo. Foi com os estudos científicos de Francis Galton, que cunhou em 1883 o termo eugenia e definiu sua teoria como “o estudo dos agentes sob o controle social que podem melhorar ou empobrecer as qualidades raciais das futuras gerações seja física ou mentalmente”, e que no final da década de 20 se tornou a base para as teorias sociais degeneradas aplicadas na Alemanha nazista, que descobrimos também representada no Brasil com a criação da Sociedade Eugênica de São

Paulo em 1918 e da Comissão Central Brasileira de Eugenia em 1931, esta pseudociência fortaleceu as ideias racistas de superioridade e de pureza de raça em parte do meio acadêmico no Brasil e no mundo.

Menos de cem anos não foram suficientes para desenraizar as ideias eugenistas que ainda são apoiadas, ainda que tacitamente (ou inconscientemente) por pessoas racistas, mas que não significa dizer que o Brasil seja um país coletivamente racista. A questão fundamental de um suposto ‘conflito social coletivo’ (se é que poderíamos usar este termo) está assentada sobre as questões econômico-sociais e não sobre questões étnicas. Lembremos da construção das relações sociais com bases na mestiçagem, dos escravos proprietários de escravos, do valor econômico-social da posse de escravos, da questão cultural envolvida na posse de outros seres humanos nos séculos passados, da chegada da eugenia como quebra de paradigma social e, finalmente, no anacronismo da análise apartada do espaço-tempo que configura os fatos históricos, e teremos o cadinho das ideias distorcidas que supõem a sociedade brasileira como uma sociedade onde o racismo estrutural define a visão de mundo dos cidadãos. As políticas sociais dirigidas como fenômenos compensatórios e a perversa ideia de que os negros e mestiços brasileiros (que são a maioria de nossa população) precisam de cuidados como se fossem inferiores ou disfuncionais, são propagadas como apanágios, quase artigos de fé.

Os conflitos que são atribuídos a um suposto racismo estrutural ou de caráter étnico, são fundamentalmente conflitos econômico-sociais. Como pretendemos explicar antes, existem doentes morais e espirituais que guardam em si os pressupostos do eugenismo e se veem como seres superiores. São antes tristes individualidades que não formam supostas coletividades.

O que precisam os brasileiros, independente de etnia, cor de pele, sexo, crença ou qualquer elemento singular é o reconhecimento de que somos antes de tudo humanos. Precisamos também de educação escolar séria e digna, formação moral voltada ao desenvolvimento de nossas potencialidades divinas, incentivo à autonomia, e todo e qualquer instrumento que ofereça ao ser humano as condições de autodeterminação, sustentabilidade e liberdade. Sem estes esforços, brancos, negros, homens ou mulheres continuarão escravos, não de senhores, mas de ideologias, governos totalitários, governantes inescrupulosos. A verdadeira liberdade acontece de dentro para fora e nenhum coletivo humano é escravo eterno de seu passado. As forças que atualmente mobilizam as comunidades descendentes dos primeiros negros brasileiros sabem bem disso. Sabem também que a revolta é uma força que quando dirigida é capaz de construir ou destruir. Finalmente, sabem que a ignorância perpetuada é a chave para o sucesso revolucionário de suas ideologias degeneradas.

Sobre o autor

Mauricio Motta

Mauricio Motta - Professor licenciado em História Pós-graduado em História do Brasil e colunista na Revista Conhecimento & Cidadania.

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BIOGRAFIA

Leandro Costa

Servidor público, advogado impedido, professor de Direito, Diretor Acadêmico do projeto Direito nas Escolas e editor-chefe da Revista Conhecimento & Cidadania.

Defensor de uma sociedade rica em valores, acredito que o Brasil despertou e luta para sair da lama vermelha que tentou nos engolir. Sob às bênçãos de Deus defenderemos nossa pátria, família e liberdade, tendo como arma a verdade.

É preciso fazer a nossa parte como cidadãos, lutar incessantemente por nosso povo e deixar um legado para as futuras gerações. A política deve ser um meio do cidadão conduzir a nação, jamais uma forma de submissão a tiranos.

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