Por Maurício Motta
Conforme iniciamos a análise do processo de rompimento político entre o Brasil e Portugal, conhecemos uma das figuras que se tornou pedra angular dos eventos de 1822: José Bonifácio. Nesta oportunidade conheceremos um pouco sobre outra personalidade que teve participação fundamental nos contornos do nosso conturbado processo de independência. Leopoldine Caroline Josepha von Habsburg-Lothringen, arquiduquesa da Áustria (Leopoldina Carolina Josefa de Habsburgo-Lorena).
A análise dos processos históricos não é funcional quando é levada a cabo com pontos de vista afastados do contexto original, sob conceitos e ideologias posteriores aos fatos em análise ou, partindo de uma ideia matriz que utilize os eventos históricos como instrumentos retóricos. Tal ação não passa de desonestidade intelectual, inversão das relações de causa e efeito ou perversão da verdade histórica. Atualmente, muitas são as possibilidades de entendimento sobre a vida e o legado da Imperatriz Leopoldina, alguns apresentados sob o viés da opressão do patriarcado contra a mulher, outros exibindo os interesses de uma elite branca exploradora das riquezas de um povo ou também apresentando-a com a matriarca da Independência e “mãe” dos brasileiros de seu tempo. Para além de qualquer análise subjetiva está a história e os fatos que a compõe, com toda a sua complexidade e possibilidades de entendimento. Quisera Deus que fosse possível apresentar a vida e obra de nossa primeira Imperatriz de maneira pronta e definitiva, como que registrada em mármore. Diante da impossibilidade, vamos aos fatos.
Leopoldina nasceu na cidade de Viena em 22 de janeiro de 1797. Filha do Imperador Francisco I da Áustria, recebeu uma educação primorosa como era comum à tradição dos Habsburgo, iniciada com seu avô Leopoldo II, que incluía fluência nas línguas alemã, italiana, francesa, inglesa, grega e latim, além de conhecimento nas ciências naturais, em especial a mineralogia e botânica, também literatura e música. Posteriormente, e por motivo de seu casamento, agregou a língua portuguesa a seu conjunto de conhecimentos. Sua formação visava preparar uma figura de Estado e não apenas uma mera reprodutora e geradora de herdeiros. Leopoldina, suas irmãs e irmãos foram educados em uma família católica estruturada e preparada para a condução de Estado, o que repercutiria nas decisões que tomou enquanto princesa consorte do Brasil.
Em 1807 Leopoldina sofreu uma ruptura traumática com o falecimento de sua mãe Maria Tereza de Áustria. Todavia, em segundas núpcias seu pai se casou com Maria Luiza de Áustria que viria a se tornar a figura mais importante em sua formação intelectual. Não tendo filhos, Maria Luiza dedicou seu sólido intelecto à formação da prole de seu marido.
O período em que nasceu Leopoldina foi de muita tensão política e social. A Revolução Francesa estava próxima de seu fim, mas traria à luz do palco da história a figura de Napoleão Bonaparte. A carnificina revolucionária e o expansionismo napoleônico causavam calafrios nas antigas dinastias europeias. Para as monarquias europeias era necessário conciliar o reinado sobre o povo e para o povo, do contrário a possibilidade da perda da coroa sob o exemplo dos revolucionários franceses seria um risco permanente.
Outro instrumento de sobrevivência das dinastias se dava pelos casamentos arranjados. Deixando um pouco de lado a visão romântica contemporânea sobre os casamentos, devemos entender aquela instituição como de fato se encaixava no contexto social e político daqueles tempos. Era um instrumento de sobrevivência, de manutenção das linhagens, de garantia da paz entre as nações ou apenas de inclusão da mulher no tecido social. O amor poderia ser o complemento feliz de uma união de pessoas, ou poderia ser construído por meio da convivência, mas não era ainda um pré-requisito para uma união. Reforçando a ideia já apresentada, a inversão das relações de causa e efeito e a sobreposição dos contextos culturais trazem distorções na compreensão dos fatos.
O casamento arranjado de Leopoldina e de Pedro de Alcântara (Pedro I do Brasil e Pedro IV de Portugal) uniu as casas de Habsburgo e de Bragança, atendendo aos interesses comerciais e políticos das duas casas reais. Assim, por procuração, em treze de maio de 1817 aconteceu em Viena o casamento. O evento foi confirmado no Brasil por uma benção nupcial dada em seis de novembro daquele ano, quando de fato os noivos se viram pela primeira vez.
A vida da recém-casada princesa não seria preenchida por futilidades ou formalidades protocolares, foi necessário que a princesa consorte se pusesse acima das dificuldades de relacionamento, das diferenças culturais, de suas próprias expectativas quanto ao casamento, para permitir que todo o preparo recebido na Áustria pudesse dar frutos, que serviriam mais ao Brasil do que à sua própria realização pessoal. Não trataremos neste momento das questões relativas à postura conjugal do príncipe e imperador Pedro I, deixando para o próximo artigo esta análise. É fato que a história registrou as infidelidades de Pedro, mas a postura de soberana dignidade de Leopoldina, muitíssimo mais que de submissão conjugal, tinha aspectos de consciência de seu papel político para manter tanto quanto possível a estabilidade do Brasil. Sua criação previa uma postura que seguisse estritamente os protocolos de sua posição político-social. Maior que suas decepções pessoais, estava o estado de onde ela viera e aquele que a recebeu pelo matrimônio. É característica das grandes personalidades da história a aceitação das maiores provas em função de ideais superiores.
De seus nove anos de casamento com Pedro de Alcântara, Leopoldina gerou a Maria, Miguel, João Carlos, Januária, Paula, Francisca e Pedro (Pedro II). Miguel faleceu no parto e João Carlos com apenas 11 meses. Uma possível crise sucessória criada pela ausência de um herdeiro do sexo masculino foi dissolvida pelo nascimento e sobrevivência de Pedro II.
As manifestações políticas no Brasil desde o retorno de D. João VI em 1821 a Portugal, os embates de ideias com relação ao status do Brasil, que iam desde o retorno à condição de mera colônia, passando pela implantação de um regime republicano e chegando a um regime monárquico sob a autoridade do Príncipe Regente, todo esse conjunto de possibilidades preocupava Dona Leopoldina e remetia frequentemente ao movimento revolucionário francês. Em carta dirigida a seu pai, Leopoldina expunha seus receios:
“São Cristovão, nove de junho de 1821. Caríssimo papai, aqui está uma verdadeira miséria. Todos os dias novas cenas de revolta. Os brasileiros são cabeças boas e tranquilas. As tropas portuguesas estão animadas pelo pior espírito e meu esposo infelizmente ama os novos princípios e não dá exemplo de firmeza como seria preciso, pois atemorizar é o único meio de pôr termo à rebelião. Receio que tome consciência tarde demais, com seu próprio prejuízo e só posso ver o futuro negro. Deus sabe o que ainda acontecerá conosco. (…) Aqui é o inferno na Terra e em todos os sentidos piora dia a dia, depois das medidas adotadas”.
Os “novos princípios” a que Leopoldina se referia eram os mesmos que alimentaram a Revolução Francesa. No momento em que escreve a seu pai, os ideais monárquicos absolutos se sobrepunham ao liberalismo e Leopoldina esperava de D. Pedro uma postura de aceitação às determinações de Portugal. Naquele momento, do ponto de vista da princesa, apoiar qualquer movimento separatista no Brasil soaria como adotar os ideais revolucionários franceses e contrariar o contrato de casamento firmado entre duas nações: a sua de nascimento e a adotiva por consórcio.
Em pouco tempo o posicionamento de Leopoldina se converteu e, em oito de janeiro de 1822 ela se dirige a seu secretário:
“(…) Excelente Schäffer, receiam-se aqui muitos distúrbios para o dia de amanhã. Terá ouvido alguma coisa? O Príncipe está decidido, mas não tanto quanto eu desejaria. Os ministros vão ser substituídos por filhos do país que sejam capazes. O governo será administrado de um modo análogo ao dos Estados Unidos da América do Norte. Muito me tem custado alcançar isto tudo. Só desejaria insuflar uma decisão mais firme”.
Não se poderá saber o que teria acontecido na noite do dia oito de janeiro nos aposentos do Palácio de São Cristóvão, mas no dia seguinte a este contato entre Leopoldina e seu secretário, ocorre o muito conhecido pronunciamento do “fico”.
“Em dois de setembro de 1822, Leopoldina na condição regente interina, presidiu reunião do Conselho de Ministros. A situação do país era insustentável em razão das manifestações e distúrbios no Rio de Janeiro e, mesmo que influenciada pelas ideias de seus ministros (Bonifácio em especial), Leopoldina redige a carta que deu caráter decisivo ao processo de independência: “Pedro, o Brasil está como um vulcão. Até no paço há revolucionários. Até oficiais das tropas são revolucionários. As Cortes Portuguesas ordenam vossa partida imediata, ameaçam-vos e humilham-vos. O Conselho de Estado aconselha-vos para ficar. Meu coração de mulher e de esposa prevê desgraças, se partirmos agora para Lisboa. (…) O Brasil será em vossas mãos um grande país. O Brasil vos quer para seu monarca. Com o vosso apoio ou sem o vosso apoio ele fará a sua separação. O pomo está maduro, colhei-o já, senão apodrece. (…) Pedro, o momento é o mais importante de vossa vida. Já dissestes aqui o que ireis fazer em São Paulo. Fazei, pois. Tereis o apoio do Brasil inteiro e, contra a vontade do povo brasileiro, os soldados portugueses que aqui estão nada podem fazer”.
Sete de setembro, mesmo em face das ameaças internas e externas, mas contando com o amor de seu povo, com a presença amorosa e dedicada de uma mulher que, com dignidade exerceu seu papel na história do Brasil, este país rumou para a liberdade. Leopoldina, arquiduquesa, princesa consorte, imperatriz do Brasil, todos os títulos nobiliárquicos que apenas adornaram uma personalidade forjada para liderar, preparada para servir à nação, disposta à resignação diante das contrariedades.
Tantas renúncias e lutas acabaram por cobrar seu preço no espírito sensível da imperatriz. Possivelmente em razão de uma septicemia pós-parto, dos poucos recursos de medicina da época, mas, agravada em grande parte pela depressão que se manifestava diante das crises matrimoniais e da necessidade de manter a fortaleza diante das agruras do trono, no dia onze de dezembro de 1826 a imperatriz faleceu.
O Brasil perdia naquele dia uma grande mulher, uma grande brasileira ainda que adotiva. Exemplo de dignidade e consciência de seu dever à frente de um Estado que nascia. Que o Bom Deus ressalte e preserve em nossas melhores lideranças contemporâneas sua majestática dignidade, nobreza de sentimentos e seu coração revestido de patriotismo.