O Mestre de Avis
O Rei D. João I (1357-1433) consolidou a independência de Portugal, ao vencer a Batalha de Aljubarrota (1385), derrotando o Reino de Castela, com o qual celebrou um tratado de paz (1411), sendo reconhecido definitivamente como Rei de Portugal e do Algarve, dando início à Dinastia de Avis. Foi no reinado de D. João I que se iniciou o processo de expansão marítima, que estendeu o território português até Marrocos, processo este que tornaria Portugal uma potência mundial no século XV. O Mestre da Ordem de Avis, como também era conhecido, foi um monarca absoluto, que jamais teve sequer vislumbre do que seria um Estado de Direito, viveu distante das Revoluções Americana, Inglesa e Francesa. Concentrava em si mesmo o poder de legislar, executar e julgar, por consequência, estava acima e para muito além das leis humanas. A ideia de um Estado em que todos estivessem submetidos à Lei, inclusive o próprio Monarca, soaria risível aos ouvidos do Rei D. João I.
Uma ressalva. D. João I não possuía limites debaixo do céu, mas temia a Deus. Era um cristão. Leitor assíduo da Bíblia, cujo texto sagrado estabelecia ao velho Rei limites morais, que ele próprio se impunha. D. João I nunca julgou um crime que ele próprio fosse a vítima, evitava confiscar bens de seus súditos e só prendia pessoas como exceção. Jamais em tempo algum encarcerou mulheres e homens em uma mesma cela. Nunca prendeu crianças. D. João I era um Rei absoluto, mas tinha senso moral, respeitava seu Povo e suas Tradições.
E assim seguiu D. João I, aclamado e reinando absolutamente até sua morte, após quase 50 (cinquenta) anos de reinado, o mais longevo da monarquia portuguesa. Morreu de causas naturais e seu corpo foi sepultado na Capela do Mosteiro de Santa Maria da Vitória, erguido em homenagem à Batalha de Aljubarrota. É lembrado como um Rei culto e benevolente, reconhecido como “pai dos portugueses”.
Uma passagem do absolutismo português, que envolve D. João I, aconteceria no reinado seguinte: em 1434, D. Duarte I publicou uma lei centralizando ainda mais o poder político na Monarquia. A raridade dessa lei é que sua vigência foi considerada desde o Reinado de D. João I, consequentemente se sobrepondo às leis que já vigoravam anteriormente ao ato de sua publicação. Timidamente, alguns ousaram questionar o Rei, indagando se não seria o caso de aplicar a lei apenas aos fatos posteriores, uma vez que as pessoas poderiam questionar a aplicação de uma lei não publicada. Obviamente, um argumento golpista, de pessoas perigosas, que não queriam o bem do Reino. Sim, argumento golpista, porque golpistas sempre os tivemos.
Para aclarar essa aparente contradição, brilha a mente dos juristas, essa casta intelectual que acompanha a humanidade desde priscas eras, especialmente a do eminente jurisconsulto João Afonso das Regras (1357-1404). Trata-se da doutrina da “Lei Mental”. Criação sublime, que rivaliza com as Pirâmides de Gizé e o Colosso de Rodes. Segundo esta criativa teoria, o Rei detinha o poder de legislar, bem como todos os outros, mas não precisava exercer esse poder legislativo publicamente. Sua Majestade poderia guardar para si uma Lei que, embora não publicada, tinha sua existência e vigência “in mente”. Portanto, a Lei em questão, que só viria a ser publicada nas Ordenações Manuelinas, já existia na cabeça do Rei D. João I, sendo sua posterior publicação mera formalidade.
Agora, alguns leitores radicais, certamente terroristas, devem esperar que eu faça um paralelo entre o reinado de D. João I e o atual momento político que vivemos no Brasil. De fato, deveria fazê-lo. Queria fazê-lo. Comecei a escrever este texto com esse propósito. Mas não o farei, porque um Anjo tocou no meu coração e disse: filho, pare. Você tem família, esposa e duas filhas ainda crianças. O Anjo está certo, não posso arriscar fazer uma crítica a vocês sabem quem e ser preso pelo ato antidemocrático de manifestar minha opinião.
Concluo confessando uma certa nostalgia do reinado de D. João I, que só conheci pelos livros. Tenho saudades de um tempo em que o governante temia a Deus e respeitava seu Povo e suas Tradições. Sobretudo, tenho saudades do bom senso do velho Rei lusitano.
Artigo publicado na Revista Conhecimento & Cidadania Vol. II N.º 26