Pedro de Alcântara

Pedro de Alcântara

A impetuosidade liberalizante

Por Maurício Motta

Alcançarmos o último elemento da tríade estruturante do processo que conduziu à independência do Brasil, o evento que marcou a ruptura política entre Brasil e Portugal. Não poderíamos fazê-lo sem conhecer a personalidade de D. Pedro I do Brasil. Fecharemos os textos introdutórios e biográficos com aquele que se tornou o ícone da Independência, obtendo por óbvio maior visibilidade no desenrolar dos fatos históricos.

Era o início da manhã do dia doze de outubro de 1798, o outono mal começara no hemisfério norte, e no palácio de Queluz em Lisboa, nascia o quarto filho do príncipe regente D. João VI e de Carlota Joaquina: Pedro de Alcântara Francisco António João Carlos Xavier de Paula Miguel Rafael Joaquim José Gonzaga Pascoal Cipriano Serafim.

A priori não caberia ao menino Pedro o trono de Portugal, mas sim a seu irmão, Dom Francisco Antônio, mas, o destino se impondo aos fatos, proporcionou a mudança nos rumos da história de Portugal. Com o falecimento do primeiro varão em 1801, os Braganças dirigiram suas expectativas a Pedro que viria se tornar D. Pedro IV, 28º rei de Portugal. Com a morte de Francisco Antônio, Pedro recebe o título de Príncipe da Beira e entra na linha sucessória ao trono português como figura imediata.

A preparação formal do jovem Pedro foi iniciada já aos cinco anos de idade, quando José Monteiro da Rocha é nomeado seu tutor. O astrônomo, matemático e reitor da Universidade de Coimbra iniciou a formação do menino Pedro, que foi continuada posteriormente por jesuítas e seus tutores. De modo geral e apesar dos contratempos que se sucederam, sua formação permitiu a boa leitura e escrita do português, do latim e do francês, além da compreensão do inglês e do alemão. Dentro do que na atualidade entenderíamos como grade acadêmica, foi conduzido pela matemática, história, geografia, avançando pelas artes políticas e música. Não sendo adequado comparar seu grau de preparo formal com o de sua futura esposa Dona Leopoldina de Áustria, tendo ambos recebido as noções adequadas à época, para o jovem Pedro as circunstâncias familiares e de sua própria vida não permitiram a mesma amplitude de formação de sua esposa.

No contexto familiar a historiografia registrou a clara disfuncionalidade do casamento de seus pais. D. João e Carlota Joaquina tinham personalidades diferentes em nível abismal. Se D. João era introspectivo, reflexivo e contemporizador; Carlota se mostrava altiva, intransigente e ambiciosa. Tais diferenças produziram tamanhas divergências, que levaram o casal a residir em palácios diferentes e se encontrarem apenas em eventos oficiais. Também conhecidos eram os casos extraconjugais de Dona Carlota, o que causava ainda mais escândalo entre ambos, ao mesmo tempo em que D. João mantinha com seus filhos uma relação amorosa, porém sem expansivas manifestações de carinho. Todo esse conjunto de fatores não passaria sem deixar marcas na personalidade de D. Pedro e que, quando somadas às quebras de continuidade que o destino lhe apresentou, ao fim permitirão ao leitor um entendimento mais amplo dos elementos condutores da história brasileira no início do século XIX, intrinsecamente ligada à figura de nosso primeiro Imperador.

Em 1807, já sob as ameaças de Napoleão Bonaparte, do Bloqueio Continental, da iminente invasão de Portugal, Pedro é transferido junto à sua família e boa parte da corte portuguesa, vindo se instalar no Rio de Janeiro. A mudança de país também não passaria incólume na trajetória de nosso futuro imperador. A distância da metrópole e as adaptações da cultura portuguesa à realidade colonial, somadas às necessidades de miscigenação para efetivação da ocupação do imenso território brasileiro, produziram um tipo original de cultura, como se dos trópicos houvesse brotado uma cultura portuguesa mais flexível e livre. O menino Pedro, dividido entre os deveres oficiais de herdeiro do trono e os irresistíveis chamamentos das ruas do Rio de Janeiro, tantas vezes foi repreendido por seus tutores por fugir às aulas, buscando o convívio e as brincadeiras com os pequenos como ele, porém filhos de escravizados. O preparo formal, as instabilidades familiares, a convivência próxima com o povo e a realidade das ruas, possivelmente forjaram na personalidade de Pedro um tipo diferente e mesclado de líder político. Podemos oferecer ao leitor dois exemplos que demonstram os aspectos conflitantes presentes na figura de D. Pedro. Quando do evento conhecido com o Dia do Fico, diante da felicidade da população com a permanência do Príncipe Regente no Brasil, os circunstantes mencionaram a ideia de desatrelar os cavalos da carruagem que o conduzia e puxarem eles mesmos pelas ruas, em resposta disse D. Pedro:

Ofende-me ver os meus semelhantes dando ao homem tributos apropriados à divindade. Eu sei que o meu sangue é da mesma cor que o dos negros”.

Poucos anos depois, em 1824, durante a Confederação do Equador, revolta liberal que ocorreu em Pernambuco, com reflexos na Paraíba e no Ceará, o imperador profundamente contrariado esbravejou questionando

o que estavam a exigir os insultos de Pernambuco? Certamente um castigo, e um castigo tal que se sirva de exemplo para o futuro”.

São visíveis dois lados de um ente repleto de conflitos e idiossincrasias como qualquer ser humano. O liberalismo desenvolvido por suas vivências e leituras, e o absolutismo herdado de sua herança cultural familiar, deixavam antever os altos e baixos de sua liderança frente aos desafios encontrados no Brasil.

Seu casamento em 1817 com Leopoldina de Áustria foi, como adiantamos no artigo anterior, uma aliança arranjada entre as duas casas reais (Bragança e Habsburgo). A presença de Leopoldina e seu amantíssimo coração, além de seu preparo para as questões de Estado, trouxe o equilíbrio e a constância que D. Pedro possivelmente carecia. Entretanto a personalidade livre e passional de D. Pedro, demonstrada pelos registros de seus casos amorosos que escandalizavam a sociedade da época, não por serem incomuns aos homens daquele período, mas pela aparente despreocupação em ocultar tais infames deslizes, tornavam sua atuação ainda mais dramática. Os sofrimentos morais dirigidos à imperatriz, a influência de sua mais famosa e longeva amante, Domitila de Castro Canto e Melo, a Marquesa de Santos, assim como as influências subjacentes dos amigos e parentes da Marquesa, praticamente levaram à ruína a imagem e a autoridade de D. Pedro enquanto Imperador. Por outro lado, a dignidade com que Dona Leopoldina se manteve, se elevando acima das questões pessoais e dando provas de sua posição como figura de Estado, levaram D. Pedro à profundas reflexões e correções de rumo em seu futuro. Após a morte de Dona Leopoldina em 1826, o imperador buscou agregar aqueles valores que testemunhara e que possivelmente não valorizara, o que causou ganhos maiores à sua personalidade e ao povo português, que a qualquer possibilidade de reconstrução de sua imagem perante a população brasileira e sua elite política.

Em suas segundas núpcias com Amélia de Leuchtenberg, uma princesa alemã dentre as mais preparadas para as exigências de uma figura de Estado, após muitas propostas recusadas e negociações de difícil concretização, em razão da fama que já corria entre as cortes europeias em relação à moralidade do Imperador brasileiro, finalmente o consórcio foi formalizado em 1829. O Imperador recebia como esposa a mulher que recebeu como seus os cinco filhos de D. Pedro com Dona Leopoldina. Possivelmente o mais tocante relato da amorosidade de Dona Amélia para com seus enteados, seja demonstrado em trecho de sua carta de despedida, dirigida ao menino Pedro II com apenas cinco anos de idade. Dona Amélia partia na companhia de Dom Pedro I rumo a Portugal e assim se expressou:

És o espetáculo mais tocante que a terra pode oferecer! Quanta grandeza e quanta fraqueza a humanidade encerra, representadas por ti, criança idolatrada: uma coroa, um trono e um berço! A púrpura ainda não serve senão para estofo, e tu, que comandas exércitos e reges um Império, ainda careces de todos os desvelos e carinhos de mãe. (…) Dorme, criança querida, enquanto nós, teu pai e tua mãe de adoção, partimos para o exílio, sem esperança de nunca mais te vermos… senão em sonhos. Adeus, órfão-imperador, vítima de tua grandeza antes que a saibas conhecer. Toma este beijo, e este… e este último. Adeus para sempre, adeus!”.

A presença de José Bonifácio, um dos grandes intelectuais da história do Brasil e de Portugal, e sua influência liberal ao lado do Príncipe Regente e posterior Imperador, completaram o conjunto de fatores e valores que moldaram a personagem maior da Independência de nosso país. Não queremos dizer que D. Pedro fosse um homem conduzido por ideias alheias, mas que o cadinho de ideias e influências que recebeu, associadas à sua essência inata, proporcionaram o equilíbrio que levaram ao desenrolar dos fatos da maneira como ficaram registrados em nossa história. Nos momentos mais decisivos Bonifácio esteve direta ou indiretamente presente. Momentos como a exigência das cortes quanto ao retorno de D. Pedro a Portugal; as viagens pacificadoras pelas províncias, especialmente São Paulo e Minas Gerais; a formação de seu Ministério, as cartas enviadas por Bonifácio ao Príncipe com aconselhamentos. Inegável que D. Pedro pôde contar com valiosos auxiliares e coadjuvantes. Entrementes, nem mesmo o valor de Bonifácio pôde fazer frente ao coração apaixonado de D. Pedro. O relacionamento com Domitila de Castro acabava por desvirtuar os ideais ou ao menos causar ruídos indesejáveis à atuação de D. Pedro como Príncipe Regente ou Imperador. Assim, a incompatibilidade de ideais afastou temporariamente a Bonifácio e D. Pedro. Ambos só haveriam de se aproximarem novamente no evento da abdicação e partida do Imperador para Portugal, nos eventos de recuperação da estabilidade política de Portugal e das batalhas que transformaram nosso D. Pedro I do Brasil em D. Pedro IV de Portugal.

Outro caractere que gostaríamos de destacar neste artigo, são os ideais de D. Pedro I quanto a questão da abolição da escravidão, algo que segundo biógrafos se repetiu em seu filho Pedro II, e em sua neta Isabel. Ideais que aparentemente foram tolhidos pelas forças econômicas e aristocráticas da época. A questão da libertação poderia ter sido resolvida muito mais cedo do que foi, se a sugestão de José Bonifácio tivesse sido incluída na Constituição de 1824, conforme destaque do texto do pesquisador Raul de Andrada e Silva.

(…) Cumpria prover a assimilação social dos negros forros, tanto quanto a sua libertação. Daí a medida consubstancial no art. X do projeto, segundo o qual a todos os pretos forros que não tivessem ofício ou modo outro de ganhar a vida atribuiria o Estado uma pequena sesmaria para o cultivo e recursos para a exploração da mesma, devendo tudo ser pago a prazo.”

O artigo do projeto não foi incluído na Constituição, mas se manteve vivo e presente em D. Pedro. Em 1834, quando já estava envolvido nas lutas de que culminaram com a expulsão de seu irmão D. Miguel e na entrada em vigor da Carta Constitucional portuguesa, D. Pedro escreve uma carta aberta ao povo brasileiro onde diz que a

“Escravidão é um mal, e um ataque contra os direitos e dignidade da espécie humana, porém suas consequências são menos prejudiciais para aqueles que sofrem no cativeiro do que para a Nação cujas leis permitem a escravidão. Ela é um câncer que devora a moralidade”.

Ainda no ano de 1834, em 24 de setembro, D. Pedro IV de Portugal perde a luta para a tuberculose e morre aos 35 anos e sua filha Maria da Glória (Maria II de Portugal) assume o trono português.

Não nos pareceria honesto limitar a personalidade ou atos de D. Pedro I a rótulos tais como ‘liberal’ ou ‘absolutista’. De igual modo associar sua conduta ante o matrimônio como exclusivamente libertina ou desregrada limitaria extremamente a persona do homem Pedro de Alcântara. Inegável que muitas de suas ações se adequavam às circunstâncias, equilibrando-se entre ceder e reprimir, se ajustar às ordenanças do cargo e romper as comportas de sua impetuosidade. D. Pedro foi o instrumento vigoroso do rompimento dos laços políticos entre Brasil e Portugal, mas cremos que ao longo do caminho, os eventuais erros tenham sido debitados às suas decisões em se deixar conduzir por uma de suas características formadoras, em detrimento de qualquer outra. Ainda assim, D. Pedro de Alcântara nos deixou como legado a liberdade, que se alguns detratores defendem ser um dos primeiros limitantes da autodeterminação do povo brasileiro, visto ser oferecido por graça, nós outros entendemos como o instrumento divino para a consecução de um país multiétnico, culturalmente rico e acolhedor, que alcançou a liberdade sem a necessidade de um morticínio fratricida.

Finalizamos dizendo que D. Pedro I é culpado de ser o primeiro exemplo em nosso país de um governante que circulando entre o povo, mostrando a seu povo uma identificação mútua. Culpado de ter conquistado a liderança e o respeito pelo mérito de estar presente, de se mostrar tal como é, de defender à custa da perda do poder os ideais de liberdade. Culpado de ser humano a ponto de errar, mas pronto a corrigir seus atos e palavras em prol de um ideal maior. Finalmente culpado de espontaneamente deixar o país que aprendera a amar, quando não mais percebia em seu povo o respeito e admiração de outrora.

Antevendo o futuro, hipoteticamente não pareceria absurdo se naqueles tempos D. Pedro I houvesse pensado preferir perder o poder pela escolha de seu povo, que perder seu povo por escolher o poder. Tal é a essência dos grandes e verdadeiros estadistas, são homens ou mulheres com esta essência que devemos escolher livremente por nossos líderes. E que assim seja…

Sobre o autor

Mauricio Motta

Mauricio Motta - Professor licenciado em História Pós-graduado em História do Brasil e colunista na Revista Conhecimento & Cidadania.

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BIOGRAFIA

Leandro Costa

Servidor público, advogado impedido, professor de Direito, Diretor Acadêmico do projeto Direito nas Escolas e editor-chefe da Revista Conhecimento & Cidadania.

Defensor de uma sociedade rica em valores, acredito que o Brasil despertou e luta para sair da lama vermelha que tentou nos engolir. Sob às bênçãos de Deus defenderemos nossa pátria, família e liberdade, tendo como arma a verdade.

É preciso fazer a nossa parte como cidadãos, lutar incessantemente por nosso povo e deixar um legado para as futuras gerações. A política deve ser um meio do cidadão conduzir a nação, jamais uma forma de submissão a tiranos.

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