Sebastianismo

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Sebastianismo, à espera de um Messias (parte final)

Em nosso último artigo apresentamos um pouco da conturbada história de D. Sebastião I e de sua família, até chegarmos aos eventos que se desenrolaram em Alcácer-Quibir em 1578. Nesta continuação trataremos sobre as relações entre o mito e o Brasil, a construção de parte importante de uma certa ‘mentalidade coletiva’ guiada contraditoriamente pela esperança e pela espera.

Em Portugal nasceu e foi alimentado o Mito do Encoberto, Mito Sebástico ou Sebastianismo. A ideia central do Sebastianismo envolve retorno, retomada, reinício, reconstrução e em muitos casos a fé. Se em Portugal D. Sebastião foi o catalisador daquelas ideias, no Brasil ele também teve protagonismo, mas é possível que tenha sido ultrapassado, para não dizer substituído, tendo evoluído para um comportamento de tipo sebastianista.

A história do desaparecimento de D. Sebastião e sua mitificação não tardou a chegar ao Brasil. Acredita-se que tenha sido trazida por Jorge de Albuquerque Coelho, que era filho do donatário de Pernambuco, Duarte Coelho. É atribuída a Jorge Coelho a participação na Batalha de Alcácer-Quibir, tendo atuado supostamente como Enfermeiro-Mór e desta forma teria testemunhado o ‘desaparecimento’ do rei. É também bastante plausível que os jesuítas tenham expandido os limites da história para muitas outras regiões do Brasil, conforme defendem alguns pesquisadores.

No século XIX a região de Bonito em Pernambuco foi o triste palco de um dos maiores massacres ocorridos no Brasil. Na Serra do Rodeadouro uma comunidade foi criada por Silvestre José dos Santos, conhecido popularmente como “Mestre Quiou”, que havia desertado do 12º Batalhão de Milícias de Alagoas e chegou à região do Rodeadouro por volta de 1811 e lá se instalou. Em sua casa feita de modo bem rústico com pau-a-pique e cobertura de palha, Silvestre organizava reuniões de oração para si e seus familiares. Aquelas reuniões atraíram a atenção dos residentes locais que passaram a frequentar as reuniões de Silvestre. Pouco tempo depois a quantidade de romeiros já era suficiente para a construção de um local maior, o que levou a criação da Irmandade do Bom Jesus da Lapa no que ficou conhecido como “Paraíso Terreal”. Durante suas reuniões, Silvestre profetizava a volta do rei D. Sebastião, que sairia de uma fenda na Pedra do Rodeadouro junto com seu exército trazendo liberdade, riqueza e felicidade a todos os residentes. A ideia inicial partiria do Rodeadouro, levaria à conquista de Bonito, seguido do Recife, chegando ao Rio de Janeiro e por fim, como em uma nova Cruzada levaria os dois exércitos de D. Sebastião (o encantado e o real) a reconquistar a Terra Santa, restituindo o cristianismo às terras infiéis. Segundo Silvestre, sob o comando do rei ressurgido, os exércitos se tornariam invisíveis aos inimigos e nenhuma munição poderia atingi-los.

As pregações e profecias de Silvestre vinham perfeitamente de encontro às esperanças de uma população sofrida e cheia de fé religiosa, porém inculta e crédula o suficiente para se alinhar àquele líder social e religioso, que se posicionou como o único interlocutor entre as mensagens recebidas e a população do Paraíso Terreal.

Após denúncia feita em 1820 pelo proprietário das terras, João Francisco da Silva, por não receber mais o arrendamento tratado junto aos locais, o administrador de Pernambuco (Luís do Rego Barreto) enviou a Bonito, tropas vindas de várias localidades de Pernambuco para sufocar qualquer possibilidade de uma nova Revolução Pernambucana como a ocorrida em 1817.

A comunidade liderada por Silvestre desapareceu na madrugada de 26 de outubro de 1820, o número de mortos e feridos se aproximou de duzentos, enquanto cerca de quinhentas mulheres e crianças foram presas e conduzidas a Recife. Quanto a Silvestre, assim como D. Sebastião, desapareceu. Acredita-se que tenha fugido durante o massacre.

O Sebastianismo ressurgiu mais uma vez em Pernambuco, desta vez na região de São José de Belmonte. Entre 1835 e 1838 foi formada uma comunidade próxima a Pedra Bonita (ou Pedra do Reino) que chegou a contar com mais de mil adeptos. Iniciada por João Antônio dos Santos e seus seguidores, a comunidade se autointitulava o “Reino Encantado”, tendo João Antônio como rei, com regras próprias e pregando o retorno de D. Sebastião, que supostamente havia se revelado a ele e prometera muitas riquezas, cura de doenças e liberdade a quem permanecesse fiel. Reuniam-se ao redor de dois monólitos de pedra que fazem parte do conjunto da Pedra Bonita, onde consumiam bebidas supostamente alucinógenas, enquanto aguardavam o cumprimento das promessas. As informações sobre a comunidade se espalharam e obviamente preocuparam as autoridades, que enviaram o padre Francisco José Correia de Albuquerque que conseguiu convencer a João Antônio a não perseverar em seus atos hereges. João Antônio se afastou, mas a comunidade permaneceu, agora conduzida por João Ferreira, cunhado de João Antônio. A partir deste ponto a fé daquela população sofrida abriu uma larga avenida para os delírios de sua nova liderança. Segundo João Ferreira, o rei D. Sebastião aparecera a ele e teria dito que os tesouros prometidos surgiriam quando os dois monólitos da Pedra Bonita fossem cobertos com o sangue dos fiéis. Para não tornar esta leitura em algo desagradável, nos limitaremos a dizer que ao fim de quatro dias mais de duzentas vidas foram perdidas, incluindo a vida de João Ferreira. Sua comunidade foi tomada por um torvelinho de loucura e fanatismo que afastou a racionalidade e a verdadeira fé. De todos aqueles atos de insanidade coletiva, restaram os monólitos e os romances de Ariano Suassuna e José Lins do Rego, inspirados naqueles eventos. Mais uma vez a fome e a credulidade foram más conselheiras inspiradas no Sebastianismo, e por falar em conselheira…

Também no sertão baiano entre os anos de 1893 e 1897 se desenvolveu mais uma comunidade sebastianista, o Arraial de Canudos. Sob a liderança de Antônio Vicente Mendes Maciel, o Antônio Conselheiro, passou de uma pequena aldeia a um aglomerado de mais de vinte e cinco mil pessoas. Foi renomeado por Conselheiro, sendo chamado de Belo Monte e passou toda aquela gente, reunida sob a autoridade de Conselheiro também passou a chamar a atenção das autoridades.

As condições precárias de vida, a fome, as doenças e a pobreza foram canalizadas por um líder carismático que pregava a volta da monarquia para defender os valores cristãos ameaçados pela República. O republicanismo rompeu com o padroado, instituiu o casamento civil, trouxe a sucessão eleitoral, entre outras coisas. Todas essas novidades soavam como apocalípticas para parte de uma sociedade cristã, defensora da sucessão monárquica enquanto representação da vontade divina entre os homens, assim como do casamento validado pela igreja, sob as bênçãos de Deus. Diferentemente dos sebastianistas anteriores, Conselheiro e seus seguidores não representavam um risco a si mesmos, em função da fé que possuíam em supostas profecias de melhores condições de vida e prosperidade. Representavam uma ameaça à estrutura sociopolítica emergente da época em razão de seu desenvolvimento à revelia do Estado que se propunha governar a todos e sobre todos.

O Estado interveio de modo contundente através de quatro expedições militares que, ao longo de quase um ano, segundo estimativas, levaram à morte de mais de vinte mil pessoas. Belo Monte foi tomado quando Conselheiro já se encontrava morto e os sobreviventes permaneceram sob a tutela estatal. Euclides da Cunha registrou suas impressões sobre os eventos que testemunhara em seu livro “Os Sertões” e profetizou a solução para a questão de Canudos. Solução que por décadas permaneceu abafada por interesses outros:

“Sejamos justos – ‘há’ alguma coisa de grande e ‘solene’ nessa coragem estoica dos nossos rudes patrícios (…) a conquista real consistirá no ‘incorporá-los’ (…) à nossa existência política”.

Não foram.

O século XXI chegou e avança, quanto ao sebastianismo, permanece como sombra que nos acompanha sem ser percebida. O que havia em nossos antepassados do Rodeadouro e da Pedra Bonita, que abriu portas àqueles fenômenos de religiosidade? A fé religiosa, a profunda ignorância da realidade, a mais desesperada necessidade e muita esperança em dias melhores. Todas as características elencadas faziam do ato de esperar por um salvador quimérico, algo compreensível ainda que pouco útil. Entregaram suas últimas forças na espera, quando não entregaram a vida a figuras idealizadas de liderança pujante e sábia.

O que houve em nossos antepassados de Canudos que também abriu portas? As mesmas características geradoras de antes, com a diferença crucial no que concerne às ações tomadas. Em Canudos não se esperava por um rei messiânico, se trabalhava pela implantação de seu reino, todavia, a morte e a desgraça foram iguais para todos, posto que fé sem ação planejada e persistente é indicativo de ruína que se avizinha.

A vitória de Jair Messias Bolsonaro na eleição de 2018 saiu da garganta de milhões de brasileiros como o vagido de um recém-nascido ao contato com a liberdade. O que fazer agora que experimentamos a liberdade? ‘Esperar’ que ele construa o nosso ‘reino’ de justiça e prosperidade. Os anos passaram e a ainda incipiente sociedade conservadora brasileira, testemunhou estarrecida a perda das eleições por parte de seu candidato. Jair Messias Bolsonaro marchou para seu próprio Alcácer-Quibir e desapareceu. Desde anos antes de sua eleição, aquela sociedade ‘esperava’ por um nome que materializasse seus objetivos coletivos. Este nome surgiu e os prodígios de patriotismo que observamos nos cegaram parcialmente, impedindo a visão do óbvio: nossos adversários nos cercavam o arraial. O período entre trinta de outubro de 2022 e primeiro de janeiro de 2023 pode ter sido o auge de um possível sebastianismo contemporâneo. Muitos ‘esperaram’ por um possível Artigo 142, outros ‘esperaram’ pela intervenção militar que restauraria a ordem, tantos outros ‘esperaram’ a cada data marcada pela concretização de alguma profecia: “Algo está para acontecer”, “falta pouco”, “ele vai agir dentro das quatro linhas da Constituição”, “ele está aguardando o melhor momento para agir”. Como portugueses d’antanho ‘esperaram’, mas o rei não voltou.

Seguiu-se a decepção e a tristeza. Rasgaram-se as vestes e cobriram-se de pó as cabeças, mas o Messias não retornou no sexagésimo terceiro dia.

Olavo de Carvalho costumava dizer que tudo quanto foi feito, foi anteriormente escrito e depois materializado. Nossa guerra é no campo cultural, é lá que precisamos lutar, é lá que venceremos. É preciso manter a esperança, mas é fundamental parar de ‘esperar’.

O que mais poderia dizer este humilde cronista ao leitor ainda desalentado? Só nos resta relembrar um trecho de um de nossos artigos, escrito para a edição de nº 1 da Revista Conhecimento e Cidadania, sob o título “A História é escrita pelos vencedores”:

Se o socialismo brasileiro foi obra de quase 100 anos de trabalho incansável, cabe a nós, herdeiros deste terrível legado, compreendermos de uma vez por todas que ocupar a presidência do Brasil é apenas ocupar um espaço, dentre tantos outros possíveis. Conquistamos o ponto mais alto, nos falta conquistar os mais importantes”.

Nas palavras do rei D. Sebastião I, “Senhores, a liberdade real só há de se perder com a vida”. Dito isto, continuaremos a lutar até o limite da vida!

Artigo veiculado na Revista Conhecimento & Cidadania Vol. II N.º 27

Sobre o autor

Mauricio Motta

Mauricio Motta - Professor licenciado em História Pós-graduado em História do Brasil e colunista na Revista Conhecimento & Cidadania.

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BIOGRAFIA

Leandro Costa

Servidor público, advogado impedido, professor de Direito, Diretor Acadêmico do projeto Direito nas Escolas e editor-chefe da Revista Conhecimento & Cidadania.

Defensor de uma sociedade rica em valores, acredito que o Brasil despertou e luta para sair da lama vermelha que tentou nos engolir. Sob às bênçãos de Deus defenderemos nossa pátria, família e liberdade, tendo como arma a verdade.

É preciso fazer a nossa parte como cidadãos, lutar incessantemente por nosso povo e deixar um legado para as futuras gerações. A política deve ser um meio do cidadão conduzir a nação, jamais uma forma de submissão a tiranos.

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