A história de nosso país remonta ao primeiro e mais antigo fóssil descoberto até o momento em Minas Gerais, que foi apelidado de Luzia, com aproximadamente onze mil e quinhentos anos. Entretanto, se considerarmos os achados do Piauí, na região de São Raimundo Nonato (entalhes cortantes e resíduos de fogueiras), podemos alcançar algo em torno de quarenta e oito mil anos.
Por outro ponto de vista, nossa história oficial registrada, contada e recontada, tem início em 1500 a partir do avistamento do Monte Pascoal e da chegada dos portugueses na região de Porto Seguro. Deste ponto em diante, aproximadamente cinquenta anos se passaram até que os primeiros seres humanos escravizados chegaram às terras brasileiras. A existência de nosso país, da maneira que atualmente o conhecemos, seu desenvolvimento, seu lugar e importância no cenário mundial, se devem entre outros fatores à mão de obra daqueles nossos ancestrais, homens, mulheres, idosos e crianças que promoveram através do seu (doloroso) trabalho, a riqueza de famílias que sobreviveram até os nossos dias e de nosso país como um todo. Assim sendo, se considerarmos a condição tantas vezes observada em nossa sociedade, de afrodescendentes em condições de pobreza, miserabilidade, marginalidade e sofrendo preconceito em razão de raça ou cor, concluímos que temos uma dívida histórica para com os descendentes em razão dos crimes cometidos contra seus ascendentes.
Dito desta forma e sem uma reflexão mais aprofundada, ainda que tenhamos traçado o raciocínio em premissas verdadeiras, chegaremos a conclusões falsas a que podemos chamar de sofisma ou falácia. O que pretendemos com este artigo não é, em hipótese alguma, justificar, minimizar ou ocultar a dor e sofrimento de milhões de seres humanos, reduzidos à terrível condição em que viveram e morreram, mas levar o leitor àqueles tempos e eventos; e não trazer os tempos e eventos ao leitor. Como já dissemos em outros artigos, a análise de tempos idos, sob o ponto de vista do homem contemporâneo, gera uma análise anacrônica e matriz de distorções danosas até mesmo às ações corretivas que se pretenda tomar.
Primeiramente gostaríamos de colocar o fenômeno da escravidão em seu contexto adequado, sem reduzir sua dramaticidade incontestável. A prática escravista mantida no Brasil por mais de trezentos anos não foi de modo algum um fenômeno original. Na Grécia antiga desde o século XVI a.C., assim como em Roma por volta de IX a.C., escravos serviam às mais diversas atividades produtivas e estavam sujeitos a punições e castigos, mais ou menos severos a depender da falta que houvessem cometido. No caso da Grécia eram extremamente raros os casos de concessões de liberdade ao cativo; porém em Roma esta prática acabou se tornando mais comum. Em ambos os casos o comércio de mão de obra escravizada era comum e altamente lucrativo.
Muito anterior à Grécia e Roma, os textos bíblicos do Novo e Antigo Testamento nos falam dos períodos de conquista e escravidão impostos ao povo judeu por babilônios, egípcios, macedônios, persas e romanos.
A etimologia nos mostra que a palavra escravo é derivada do latim slavus (pessoa que é propriedade de outra) que por sua vez está associada aos eslavos, outra etnia que também foi escravizada a partir do leste europeu.
Outro ponto que precisa ser analisado, que está mais diretamente ligado à nossa história, e que tem sido fortemente contestado por integrantes de movimentos identitários é o tipo de participação portuguesa no comércio de escravizados africanos. Expliquemos… Até poucas décadas atrás, a ideia de que durante o período de expansão comercial e grandes descobrimentos (séculos XV e XVI), Portugal conseguia mão de obra escrava pela via militar, invadindo desde a costa até o interior do continente africano e trazendo cativos milhares de pessoas, que seriam então transportadas e distribuídas pelos portos de interesse econômico na América e Europa, se não era amplamente defendida, também não era negada. Assim, não era uma ideia incomum entre professores ou estudiosos do tema, que portugueses sequestravam pessoas desde as mais interioranas regiões de África para fins de comércio. Porém, as fontes históricas primárias que, sendo menos sujeitas a distorções ideológicas atuais, nos oferecem um cenário bastante diverso daquele, contradizem peremptoriamente aquela antiga interpretação.
O reino do Congo, localizado na costa ocidental da África, mantinha um estreito relacionamento comercial e mesmo de amizade com o reino de Portugal. As trocas comerciais eram feitas a partir das necessidades de cada reino, ou seja, Portugal necessitava de mão de obra e o reino do Congo desejava o ouro. A pergunta mais importante que o leitor deve se fazer a este ponto do relato é: mas os reis congoleses vendiam seus próprios cidadãos em troca de ouro? A resposta é não! Assim como em outros momentos históricos e em outras regiões do mundo, a escravidão se dava pela conversão em escravos dos vencidos em batalhas. Poderiam ser também escravizados aqueles que não possuíssem meios de honrar com suas dívidas. Entretanto, o maior contingente provinha das batalhas entre tribos e/ou reinos.
A partir dessa constatação, Portugal se torna um dos elos de uma corrente bem maior e não a corrente em si mesma. Estes relatos estão baseados em fontes que têm sido franqueadas ao acesso a partir do livro escrito pelo Visconde de Paiva Manso e publicado postumamente em 1877 com o título História do Congo, onde pode-se ver inclusive o trato próximo e até mesmo fraternal que tinham os reis de Portugal e Congo, como segue no seguinte trecho de carta enviada por D Afonso, rei do Congo a D. Manoel de Portugal em 1517:
“Mui poderoso e mui alto príncipe e Rei meu irmão. Ví numa carta de vossa alteza em que me diz que os meus parentes que eu enviava a esses Reinos aprender, que deles se não seguia nenhum proveito, do que sou muito desconsolado porque eu nem os mando para outra coisa somente para aprenderem o que for serviço de nosso senhor Jesus Cristo e para acrescentamento de nossa fé católica por alumiar os cegos que são em meus Reinos, para que depois de minha morte possam sustentar a fé de nosso senhor Jesus Cristo e por esta razão os mando ser ensinados e castigados muito bem. (…)”.
Trata-se de uma queixa que faz o rei do Congo com relação ao pouco aproveitamento do envio de parentes a Portugal para estudos. Observa-se que ambos os reis tem-se a conta de irmãos, aliados e cristãos. Pode parecer ao leitor que por serem cristãos tão fiéis e devotos, é incompreensível que encarassem a escravidão como natural. Mais uma vez é preciso lembrar que estamos tratando de uma fonte do século XVI e não do século XXI. A mensagem cristã permanece a mesma até hoje, mas os homens são homens de seus tempos.
Anteriormente ao relacionamento comercial entre Portugal e Congo, a Bula Dum Diversas emitida pelo Papa Nicolau V em 1452 outorgava a Portugal, por meio de seu rei Afonso V o direito de escravizar os sarracenos (antiga forma de identificar árabes e muçulmanos).
(…) outorgamos por estes documentos presentes, com a nossa Autoridade Apostólica, permissão plena e livre para invadir, buscar, capturar e subjugar sarracenos e pagãos e outros infiéis e inimigos de Cristo onde quer que se encontrem, assim como os seus reinos, ducados, condados, principados, e outros bens […] e para reduzir as suas pessoas à escravidão perpétua. (…) nós lhe concedemos, por estes presentes documentos, com nossa Autoridade Apostólica, plena e livre permissão de invadir, buscar, capturar e subjugar os sarracenos e pagãos e quaisquer outros incrédulos e inimigos de Cristo (…).
A questão naquele momento não era racial, isso pouco ou nada importava ao Papa ou ao rei de Portugal. A questão central era o avanço do poder econômico, militar e religioso dos muçulmanos frente ao ocidente, algo que se tornaria ainda mais urgente um ano após a Bula Dum Diversas quando Constantinopla, capital do império bizantino e continuadora do império romano em sua vertente oriental, cai sob o controle dos turcos otomanos, marcando o fim da Idade Média. À igreja importava rechaçar o avanço dos muçulmanos e o risco que isso representava a fé católica, ao rei de Portugal importava ter acesso a uma nova fonte de escravos, já que os mercados orientais se encontravam então sob o controle de árabes e outros mercadores vinculados à religião muçulmana.
Aos muçulmanos daquele período, o comércio de escravos e a utilização daquele tipo de mão de obra eram tão naturais quanto qualquer tipo de atividade comercial. Também entre eles as questões étnicas não eram de nenhuma relevância, porém, um elemento diferenciava muçulmanos e cristãos na relação com seus cativos: a um escravo que se convertesse ao islamismo, era concedida a liberdade, passando a contar como um irmão em fé e credor da mesma consideração e respeito de um muçulmano desde o nascimento. O fato é que um convertido contava como mais um braço armado na defesa da religião muçulmana. Um escravo convertido ao cristianismo poderia conquistar sua liberdade, mas não em razão de sua conversão.
Quando analisamos com o distanciamento necessário as questões econômico-comerciais vinculadas ao comércio de escravos, é possível concluir que, assim como em qualquer outra atividade comercial, a proximidade das fontes de recursos e os custos envolvidos na compra e transporte, faziam da África a opção mais óbvia. Insistiremos em dizer que não buscamos justificar as ações do passado, mas entender os contextos envolvidos e a cultura associada ao momento histórico que tomamos por objeto de estudo. Do ponto de vista dos homens daquele tempo a escravização por meio de guerras “justas”, por dívidas, ou por ordenação religiosa era ação tão normal quanto qualquer outra. Do ponto de vista atual são aberrações e desumanidades que não devem ser jamais repetidas. Mas por ora estamos analisando as relações entre Europa e África nos séculos XV e XVI e não o Sudão do século XXI.
Encerramos neste ponto reforçando a conclusão de que para as sociedades medievais e do início da era moderna, as questões étnico-raciais eram irrelevantes, mas o acesso às fontes e os baixos custos envolvidos eram sim, de extrema relevância, assim como os interesses geopolíticos e religiosos.
Encerrada esta etapa de nossa análise, trataremos da continuidade deste artigo, onde analisaremos as relações de exploração da mão de obra escravizada no Brasil, as relações sociais possíveis e as questões econômicas que punham em conflito ou em associação os brancos e os negros. Até breve!