A polarização político-ideológica no Brasil de Bolsonaro
Por Mauricio Motta
Antes de iniciar este artigo, convém avisar nossos leitores que, apesar do título, pouco falaremos de Jair Messias Bolsonaro. Mas temos algo a dizer sobre o desenrolar da história que permitiu que ele se tornasse o 38º presidente do Brasil.
Segundo aquilo que se convencionou chamar de mídia tradicional, o Brasil tem experimentado desde 2014 um fenômeno que tem causado uma certa cisão política, ou no mínimo um estado de tensão social: a polarização político-ideológica. Seja nas redes sociais ou nos tradicionais redutos de debate informal, tais como lares, bares, ambientes corporativos e outros, é facilmente percebido que em algum momento as partes envolvidas experimentarão algum nível de tensão causada por esse fenômeno.
Os noticiários políticos rotineiramente reforçam a ideia da polarização, estabelecendo consequências danosas ao tecido social. Para alguns tem alimentado discursos de ódio, para outros tem fragmentado a rota para a estabilidade política, outros ainda discutem as limitações impostas pelo foco em apenas duas possibilidades (Lula e Bolsonaro por exemplo).
Ao menos duas questões emergem da constatação da existência de uma polarização, e de um possível estado de tensão nas relações sociais quando o tema é política: seria um fenômeno novo em nosso país? Seria afinal uma condição benéfica para o amadurecimento político da população brasileira?
O caráter pedagógico da História muito pode auxiliar neste caso, posto que tem ensinado as sociedades de hoje a partir da observação e do entendimento dos fatos do passado, desde que guardados seus devidos contextos e buscando a análise segundo os conceitos de cada época. Segundo o pensamento de Marco Túlio Cícero (106 a 43 a.C.), filósofo e orador romano, “a História é a testemunha dos tempos, a luz da verdade, a vida da memória, a mestra da vida”. Assim, entendemos que é possível recorrer ao passado para a compreensão do presente.
Voltemos então ao Brasil do século XIX. Não se conheciam ainda partidos políticos durante o Primeiro Reinado (1822 a 1831), mas nem por isso o Brasil experimentava qualquer inclinação a um pensamento político hegemônico. Já neste período o “grupo português” e o “grupo brasileiro”, buscavam a defesa de seus interesses próprios (sim, próprios). O primeiro, formado por portugueses residentes no Brasil, funcionários da administração pública e militares; os últimos, ligados aos grandes proprietários de terras, comerciantes brasileiros e mesmo alguns poucos comerciantes portugueses não dependentes das trocas com Portugal. Ainda que de maneira incipiente, já era possível observar um ambiente de acalorados debates político-ideológicos
O período regencial (1831 a 1840) inaugurou um novo momento no pensamento político brasileiro. Com as regências, observam-se três correntes políticas que vão dividir o cenário brasileiro, que eram os ‘liberais exaltados’ (jurujubas), os ‘liberais moderados’ (ximangos) e os ‘restauradores’ (caramurus). Este fato apenas formalizava e consolidava a divisão interna já existente e anteriormente citada. Entre os liberais exaltados defendia-se o federalismo e alguma autonomia econômica para as províncias; entre os moderados defendia-se uma monarquia forte e constitucional; finalmente os restauradores que defendiam o retorno de D. Pedro I ao Brasil e a manutenção do status quo.
Como se vê até aqui, o Brasil era ainda uma nação em construção, um Estado monárquico e o pensamento hegemônico estava ainda longe de se tornar realidade.
Durante o segundo reinado (1840 a 1889), o partido liberal (luzias) e o conservador (saquaremas) mantinham o pensamento divergente, a alternância de lideranças e, conduzindo ministérios enriqueciam o pensamento político brasileiro. De forma mais consolidada e formal, os tipos integrantes das antigas agremiações, agora se reuniam em partidos.
Destacamos que mais do que a existência de múltiplos partidos no período imperial, o que realmente mantinha o ambiente político longe da hegemonia eram as ideias divergentes. Comparando com o quadro político atual, momento em que o Brasil conta com 33 partidos políticos, não se pode dizer que quanto ao viés ideológico primemos pela variedade.
Num contexto mais regional, o Rio Grande do Sul nos ofertou, durante a Revolução Federalista de 1893, sua contribuição ao que hoje tem-se chamado de polarização política. A revolução ocorreu em função da discordância dos locais frente a administração federal. Assim, lutaram os Maragatos que eram federalistas e os Chimangos (ou Pica-paus) positivistas e presidencialistas. Respectivamente lenços brancos contra lenços vermelhos.
Em 1923 as forças regionais voltavam a se enfrentar, mais uma vez as antigas questões políticas (ainda não resolvidas) levavam à divergência. Desta vez a questão não resultou em violência como anteriormente, já que não ocorreram decapitações.
Avançando um tanto mais em nossa história pouco alinhada com o consenso, chegamos ao ano de 1945. O Brasil lutara nos fronts italianos, defendendo a liberdade e a democracia. Por outro lado, mantinha um regime interno de pouca liberdade e muito distante da democracia: o Estado Novo de Getúlio Vargas. Marcadas desde 1942, as eleições presidenciais de 1945 marcariam o fim da ditadura do Estado Novo e o fim da era Vargas. Objetivo que foi ameaçado pelo surgimento de um movimento impulsionado por jornais e rádios, abraçado pelas camadas mais humildes da população, conhecido como “queremismo”. O queremismo, como o nome dá a entender era um movimento daqueles que queriam… queriam que Vargas fosse candidato nas eleições de 1945, mesmo tendo estado à frende do país por quinze longos anos e, dos quais, oito anos foram ditatoriais.
Vargas não conseguiu se manter no governo, tendo sido deposto pelo então ministro da Guerra, o general Góis Monteiro. O general Eurico Gaspar Dutra é eleito para o período 1946 a 1951. Não se engane o leitor se imaginar que a polarização política colaborou para o fim da era Vargas. De fato, apenas alguns anos mais tarde poderíamos compreender suas causas e contemplar seus efeitos, ainda que de maneira trágica.
Em 1951 Vargas retorna ao Palácio do Catete, desta vez de maneira democrática. Finalmente os queremistas alcançavam seu objetivo. Entretanto, em seu novo governo, Vargas não obteve os mesmos resultados de sua primeira – e longa – gestão. Naquele momento a Constituição de 1937 já havia sido superada e a que vigia havia sido promulgada em 1946. Vargas não tinha mais os instrumentos de controle e censura que possuía. O consenso não era mais conseguido pela força policial e o queremismo dava lugar às greves e às manifestações de contrariedade (algo proibido durante seu governo anterior). Ou seja, fora de um regime de controle estatal e de direcionamento das mídias disponíveis, o governo Vargas não repetia sua popularidade e sucesso. O país voltava à normalidade e à polarização política.
De maneira muito resumida, depois de tantos conflitos internos, oposições, críticas ferozes, greves e denúncias, Vargas comete suicídio em agosto de 1954. De forma dramática e trágica Vargas deixava a vida para entrar na história.
Em 1989 o país exultava de cidadania pois enfim, pela primeira vez em quase 30 anos poderia eleger diretamente um presidente. O país estava dividido (novidade?) entre o jovem caçador de marajás – Fernando Collor – e o representante do operariado, Lula. Quem poderia afirmar naquela eleição, sem risco de errar, que algum dos dois candidatos sairia vencedor? Tanto Collor quanto Lula dividiam a atenção dos eleitores antes e depois do pleito. Antes porque a juventude e entusiasmo de Collor traziam ares de renovação à política brasileira, assim como o passado humilde de Lula sinalizava que as causas sociais teriam vez nos projetos de governo. Depois porque apesar da desolação causada pelo impeachment de 1992, após graves denúncias contra Collor, o eleitorado desiludido não migrou instantaneamente para Lula, fato comprovado pela sua segunda derrota no pleito seguinte, desta vez frente a FHC (Fernando Henrique Cardoso).
Os anos 90 foram um período de pseudo polarização política entre o suposto neoliberalismo de FHC e as propostas mais claramente socialistas de Lula. Hoje podemos compreender que o “teatro das tesouras”, quando duas forças de mesma polaridade simulam oposição para conquistar o poder, estava sendo aplicada naquela década. Em função do sucesso
do plano Real, da estabilidade econômica e de um tímido movimento em direção a pautas sociais promovidas por FHC, Lula continuava sua jornada rumo ao poder, simulando polarização no espectro político.
No ano de 2003 Lula e sua camarilha ocupam o Palácio do Planalto. Era o ápice de um projeto político que oferecia à população a imagem de um futuro de justiça social, igualdade e prosperidade. Entretanto, a distância entre a oferta e a concretização do feito se mostraria enorme, e diríamos mesmo que impossível, conhecidos atualmente os objetivos reais de seu projeto que eram: manutenção do poder e financiamento de governos socialistas por toda a América Latina, buscando criar condições para o surgimento da “grande pátria”.
Entre o ano da primeira eleição de Lula e o fim do deplorável governo de sua sucessora (Dilma Rousseff) observamos 13 longos anos. O que chama a atenção sobre este período quanto às questões em análise, é que de maneira análoga ao período Vargas – guardadas as devidas diferenças – o Brasil esteve politicamente hegemônico, o fenômeno da polarização política se tornou gradativamente símbolo de retrocesso e instabilidade. Tal observação pode ser confirmada por uma fala, ainda no ano de 2009, do então presidente Lula que comemorava: “Pela primeira vez não vamos ter um candidato de direita na campanha. Não é fantástico isso? Querem conquista melhor do que em uma campanha a gente não ter nenhum candidato de direita? Porque antigamente como era a campanha? Era o de centro-esquerda ou de esquerda contra os trogloditas de direita. Era assim em toda campanha”.
A campanha eleitoral de 2018 trouxe elementos novos ao cenário. Em meio à crise política e econômica, inflação e taxas de desemprego absurdamente altas deixadas por Dilma Rousseff, desponta como candidato improvável a figura até então exótica de Jair Messias Bolsonaro. Ainda que alguns analistas apontem-no como o promotor da polarização, como um cavaleiro do apocalipse político, ele tem se demonstrado cada vez mais o efeito a uma causa anterior a ele próprio. A insatisfação de parcelas significativas e de amplo espectro da sociedade brasileira, deixou atônitos aqueles que funcionavam como cordões de fantoches. Nos referimos aos veículos de informação que até poucos anos antes, monopolizavam o acesso à informação e a definição da verdade e que, diante da internet e das redes sociais que já alcançavam os lares mais simples, ocupando espaços antes vedados aos livres pensadores populares, tinham desestabilizados os alicerces hegemônicos da comunicação de massas.
Não nos parece plausível atribuir a Bolsonaro a responsabilidade pelo fenômeno da polarização política. Nem mesmo nos parece honesto afirmar que este é um fenômeno novo em nosso país. O Brasil tem em sua história o debate, o contraditório e a pluralidade de pensamentos, eventualmente sufocados por um governo fascista como o de Vargas (termo
usado corretamente neste caso), ou por uma camarilha que associada a grandes grupos de comunicação, criaram câmaras de eco e favoreciam a imersão da sociedade em uma cruel espiral do silêncio.
Se pretendemos de fato, construir e consolidar um ambiente político saudável, é mais que necessário que se defenda a diversidade de ideias, mas antes é fundamental que exista de fato e de direito um pensamento conservador em nosso país, que se contraponha aos tantos partidos de centro, centro-esquerda, esquerda e extrema esquerda existentes. É urgente que criemos um partido de viés conservador ou “de direita”, como queiram chamar. Do contrário, o tenebroso espetáculo do “teatro das tesouras”, que ainda não é um mal superado definitivamente no Brasil, continuará a enganar a muitos.
Se alguns desavisados ainda temem a polarização ideológica e política considerando-a um mal, é bom que lembrem que seu oposto é o pensamento hegemônico e o partido único, irmãos siameses e filhos do socialismo.
Escrito por Maurício Motta: