JE T’AIME BRÉSIL

JE T’AIME BRÉSIL

Por Maurício Motta

As relações entre o Brasil e a França sempre aparentaram cordialidade, diplomacia e polidez, porém, desde a posse de Jair Bolsonaro o clima ficou quente e as chamas parecem ter devastado a antiga paixão que unia os dois países. Será verdade? Será que sempre tivemos as mais saudáveis relações com os franceses? Como parte do Brasil quase teve o francês como idioma? Como a França ajudou o Brasil a se tornar independente de Portugal? A França tem um caso de “amor” com o Brasil quase tão antigo quanto a nossa própria história, mas o que sabemos sobre isso?

Em 1494 o Tratado de Tordesilhas havia dividido exclusivamente entre Espanha e Portugal a posse das terras descobertas em 1492, ou as que viessem a ser descobertas posteriormente. Entrementes, o rei Francisco I da França com profunda ironia questionava aquela divisão com a seguinte pérola: “Eu gostaria de ver a cláusula do testamento de Adão que me exclui da partilha do mundo”. As palavras de Francisco I não seriam ditas em vão. Em verdade, incentivados, apoiados e algumas vezes financiados, franceses se lançaram ao mar para recolherem sua parte da herança adâmica.

O contato dos franceses com nossas costas ocorreu ainda no século XVI. Entre 1503 e 1505, Paulmier de Gonneville navegou pela costa do nordeste, tendo avançado ao menos até Porto Seguro. O carregamento de seu navio (L’Espoir) era composto basicamente de Pau-Brasil que foi apreendido por corsários em sua passagem pela ilha Jersey, no Canal da Mancha. Giovanni Verrazano, um navegador italiano a serviço da coroa francesa, também esteve no Brasil em 1527 em busca de Pau-Brasil.

O período entre 1500 e 1530 não foi de grande interesse para a coroa portuguesa no que tange à exploração econômica das potencialidades das novas terras. Fato é que o comércio de especiarias orientais era objetivamente lucrativo, e tal questão de prioridades fazia nosso litoral permanecer desguarnecido, visto que naqueles trinta anos apenas quatro expedições portuguesas patrulharam o litoral brasileiro: 1501 comandada por Gaspar de Lemos; 1503 comandada por Gonçalo Coelho; 1516 e 1526 lideradas por Cristóvão Jacques. Todas insuficientes para impedir ou mesmo diminuir a interação entre nativos e franceses, e o consequente tráfico de Pau-Brasil.

A partir de 1530 com Martim Afonso de Sousa e cerca de quatrocentos homens e algum planejamento, o litoral passa a ser mais bem guarnecido, tendo especial atenção ao litoral do Maranhão, de Pernambuco e São Paulo. Naquele momento a presença francesa era constante e sua associação com tribos locais, como os Tupinambás, ampliava ainda mais sua relevância. Outro ponto que fazia dos conquistadores franceses um risco real à manutenção da posse da terra, era que as relações entre franceses e nativos eram comerciais e amistosas, algo diferente do contato com os portugueses, vistos às vezes como invasores, algumas vezes como escravizadores e eventualmente como aliados, a depender da tribo a que se refira.

Em seu livro “Duas Viagens ao Brasil”, em 1554 o alemão Hans Staden informava que

os franceses vêm anualmente com seus navios. Trazem facas, machados, espelhos, pentes e tesouras. Eles (os índios) lhe dão em troca pau-brasil, algodão e outras mercadorias, como plumas e pimenta. Eles são pois bons amigos”.

Em 1554, Nicolas Durand de Villegagnon, oficial naval francês esteve na região de Cabo Frio, onde pôde reunir informações suficientes quanto a organização e localização de fortificações, rotas e rotinas dos colonizadores portugueses, o que serviu para elaborar um plano de ocupação definitiva da região da Baía da Guanabara, no que viria a ser futuramente o Rio de Janeiro. A região era evitada pelos portugueses em razão da hostilidade dos nativos, o que facilitava bastante o estabelecimento militar, ou seja, inimigos de meus inimigos, são meus amigos. A ilha de Serigipe ou das Palmeiras (segundo os nativos e portugueses respectivamente) foi escolhida para a construção do Forte Coligny, servido de baterias voltadas para a boca da barra da Baía de Guanabara. Com o apoio dos índios Tamoios e Tupinambás, os novos colonizadores se estabeleceram na região da Praia do Flamengo. O empreendimento conhecido como França Antárctica perdurou de 1555 a 1570 quando os portugueses conseguiram vencer os últimos franceses na Batalha de Cabo Frio. Ainda em 1565 os portugueses fundaram a cidade de São Sebastião do Rio de Janeiro com o objetivo de consolidar sua presença e segurança na região. A posição escolhida era estrategicamente especial para a vigilância e defesa da ocupação: entre o Pão de Açúcar e o Morro Cara de Cão. Nas palavras de Estácio de Sá:

Levantemos essa Cidade que ficará por memória do nosso heroísmo, e de exemplo de valor às vindouras gerações, para ser a Rainha das Províncias e o Empório das riquezas do mundo”.

Estaria longe de ser a última vez que os franceses tentariam ocupar ou se beneficiar das riquezas do Brasil. Entre 1612 e 1615, durante a vigência da União Ibérica (1580 a 1640), ou seja, período de fusão dos impérios de Portugal e Espanha, os franceses ocuparam a região do Maranhão, estendendo suas posições até o norte do Tocantins, leste do Pará e parte do Amapá. A França Equinocial, era um empreendimento ambicioso, mas que novamente foi rechaçado pelos portugueses. O legado daquela empreitada foi a fundação da cidade de São Luís, em homenagem ao rei francês Luís XIII.

Por volta do fim do século XVII havia um grande temor por parte da população do Rio de Janeiro em relação a estrangeiros, particularmente franceses. Não era demasiado, pois ainda circulavam notícias sobre navios franceses desde o norte até Sacramento. O então governador Sebastião de Castro Caldas chegou mesmo a se incomodar com a rede de boatos que circulavam entre os residentes, sempre que navios franceses chegavam à cidade, mesmo os autorizados.

“a maior parte destes moradores que faltos de experiência com qualquer notícia de navios nesta costa, procuram segurar as suas famílias e cabedais nos matos de suas fazendas, devendo pelo contrário uma e outra coisa recolher a esta cidade, onde estão seguros de qualquer sucesso”.

Infundados ou não, reverberados entre os colonos, aqueles boatos acabaram por se confirmar em 1710. O corsário Jean-François Duclerc, contando com quatro navios de guerra e um de transporte, cerca de mil homens, invadiu a cidade do Rio de Janeiro. A situação militar e de defesa da cidade era precária naquele período e já havia sido pedido reforço material e de pessoal, mas sem resposta do governo metropolitano. Por outro lado, sem planejamento adequado, avançando pelo labirinto de ruas estreitas que compunham a cidade, e tendo se dispersado, em pouco tempo os invasores se renderam. Ao final, aproximadamente 400 franceses foram mortos e os rendidos foram presos. É possível que pela primeira vez a cidade tenha experimentado uma crise de superpopulação carcerária. A ninguém interessava manter tantos corsários aprisionados na cidade, neste sentido foi pensada a transferência para Pernambuco, mas depois deliberou-se enviar alguns à Bahia. Quanto a Duclerc, pelo seu status junto à coroa francesa, foi mantido sob guarda em uma casa residencial até que foi misteriosamente assassinado. A invasão de Duclerc foi rechaçada não por mérito dos defensores portugueses, mas pela total incompetência dos invasores.

A população ainda não havia esquecido o ocorrido em 1710, quando às primeiras horas da manhã de doze de setembro de 1711 e sob neblina, uma esquadra francesa comandada por René Duguay-Trouin, formada por dezessete navios, mais de seis mil homens e 728 canhões, rompeu a entrada da Baía de Guanabara. Apesar dos avisos terem chegado com antecedência suficiente, aparentemente a displicência das posições de defesa proporcionou fácil acesso aos invasores. Após dois dias de bombardeios, 3800 franceses desembarcam e passaram a controlar mais posições defensivas portuguesas. Quanto ao governador Francisco de Castro Morais, após reunião com o Conselho de Guerra, resolveu abandonar a cidade. Mesmo sendo informado que reforços vindos de Minas Gerais já se aproximavam do Rio de Janeiro, em auxílio à recuperação da cidade, o governador negociou o pagamento do resgate da cidade, acordado em 610 mil cruzados, 100 caixas de açúcar e 200 bois. Após quase dois meses de ocupação, os navios de Duguay-Trouin deixam o Rio de Janeiro com porões cheios e com os remanescentes da invasão malsucedida de Duclerc resgatados. Não poderia o Rio de Janeiro contar apenas com a sorte duas vezes seguidas, pela primeira vez a cidade foi vítima da covardia de um governador ante a ação de malfeitores.

E as “amistosas” relações entre Brasil e França seguiam, ainda que de maneiras indiretas. No final de 1807, durante um período conturbado para a Europa, em plena expansão territorial francesa sob o governo de Napoleão Bonaparte, obrigados ao bloqueio continental imposto à Inglaterra, e após longas negociações entre Portugal e França e, paralelamente entre Portugal e Inglaterra, ficou decidido que a corte portuguesa partiria rumo ao Brasil. As tropas francesas chegaram a Lisboa ainda a tempo de testemunhar os navios portugueses e ingleses na linha do horizonte, rumo ao Brasil.

A chegada da corte ao Brasil em janeiro de 1808, representou o início de profundas mudanças políticas, econômicas e sociais para o Brasil, em especial para o Rio de Janeiro. De forma bastante resumida podemos dizer que a presença de Dom João VI no Brasil possibilitou a manutenção da integridade do território brasileiro e, de certa forma, criou as condições necessárias para que, quando retornaram à Europa em 1821, o Brasil estivesse muito próximo de sua independência. Quem diria que tendo buscado ocupar e se beneficiar das riquezas brasileiras por três séculos, a França acabaria por colaborar para a manutenção da grandeza, para a independência e soberania do Brasil. A História é às vezes um tanto irônica.

Entre os anos de 1961 e 1963 os jornais brasileiros e franceses davam notícias de uma guerra entre os dois países: a guerra das lagostas. O fato se deu após pescadores brasileiros denunciarem a presença de embarcações de pesca francesas em águas territoriais brasileiras no litoral de Pernambuco. A crise comercial se expandiu para um embate diplomático entre as duas nações, quase chegando a um enfrentamento naval, visto que a França deslocou e manteve em prontidão um contingente naval em área próxima àquela sob litígio. A crise foi contornada gradativamente em função do prejuízo causado aos armadores franceses que não conseguiam capturar as lagostas, já que precisavam se manter fora dos limites da plataforma continental brasileira. Enfim, sem um conflito de fato, os interesses comerciais brasileiros prevaleceram diante de mais uma ação “corsária” francesa no litoral brasileiro.

Chegando a 17/11/2020, o Jornal de Brasília apresentava em sua edição digital o seguinte título:

Alemanha e França compraram madeira ilegal do Brasil, indicam ações da PF; Bolsonaro ameaça europeus”.

Segundo a reportagem, a Operação Arquimedes da Polícia Federal, deflagrada em 2017, conseguiu apreender 120 contêineres com 2.400m³ de madeira ilegal que se destinava a empresas importadoras na França, entre outras nações europeias. Nossa madeira, nossas lagostas, enfim nossas riquezas, os séculos avançam inexoravelmente e os interesses exploratórios franceses permanecem.

Em reunião de cúpula de potências econômicas realizado em Biarritz na França em 2019, o presidente Emmanuel Macron afirmou que a Amazônia é um “bem comum” e pediu mobilização do G7 contra o desmatamento, os incêndios e no reflorestamento. Já o ministro do Comércio Exterior da França, Franck Riester, em audiência diante do Senado francês, declarou que “a Amazônia não é só dos brasileiros”. Se nos séculos anteriores os franceses estiveram preocupados com a nossa mata atlântica, área onde abundava o Pau-Brasil, ao que parece na atualidade as preocupações se expandiram à Amazônia.

Segundo publicado em agosto de 2019 no portal R7, citando artigo de autoria do Grande Conselho dos Povos Indígenas da Guiana Francesa,

O fogo não é o único perigo que ameaça ou destrói a Amazônia. O extrativismo é em grande parte responsável. E ficamos surpresos com a posição do presidente Emmanuel Macron, que insiste em denunciar a destruição da Amazônia brasileira ou boliviana, mas ao mesmo tempo destina 360.000 hectares de floresta para empresas de mineração multinacionais na Guiana e na Amazônia francesa”. (Fonte: https://noticias.r7.com/internacional/conheca-o-pedaco-da-amazonia-que-faz-parte-da-franca-28082019 em 25/06/2022)

Hypocrisie!

A presença francesa no Brasil vai muito além da culinária, da arquitetura ou dos costumes sociais. Ao longo de nossa história a França esteve ao redor de nossas potencialidades e riquezas, ao menos em três momentos a integralidade de nosso território esteve de alguma forma ameaçada, ainda que inadvertidamente Napoleão tenha nos auxiliado. Na atualidade não estamos distantes do mesmo cenário de interesses econômicos que nos acompanharam até aqui. Em pleno século XXI as embarcações francesas continuam navegando por nossas costas, e por falta de Tupinambás recorrem a novos aliados.

Estejamos atentos!

Sobre o autor

Mauricio Motta

Mauricio Motta - Professor licenciado em História Pós-graduado em História do Brasil e colunista na Revista Conhecimento & Cidadania.

Deixe uma resposta

O seu endereço de e-mail não será publicado. Campos obrigatórios são marcados com *

BIOGRAFIA

Leandro Costa

Servidor público, advogado impedido, professor de Direito, Diretor Acadêmico do projeto Direito nas Escolas e editor-chefe da Revista Conhecimento & Cidadania.

Defensor de uma sociedade rica em valores, acredito que o Brasil despertou e luta para sair da lama vermelha que tentou nos engolir. Sob às bênçãos de Deus defenderemos nossa pátria, família e liberdade, tendo como arma a verdade.

É preciso fazer a nossa parte como cidadãos, lutar incessantemente por nosso povo e deixar um legado para as futuras gerações. A política deve ser um meio do cidadão conduzir a nação, jamais uma forma de submissão a tiranos.

FALE COMIGO

Escreva sua mensagem aqui. Dúvida, ideia, critica.