“Liberdade, ainda que tardia”. Em tempos em que se tem discutido tanto a questão da liberdade, em todas as suas possibilidades, nos vemos refletindo sobre a abrangência da palavra. A liberdade que queremos é a que nos permite sermos livres, ou a que pretende que todos sejam livres? Queremos liberdade hoje, ou estaremos dispostos a fazer dela destino e caminho simultaneamente? E se, como no lema presente na bandeira do estado de Minas Gerais a liberdade for tardia, demostraremos resiliência ou veleidade?
A história da Inconfidência Mineira é uma página intrigante e ambígua nos anais da luta por independência e liberdade no Brasil colonial. Ao examinarmos este episódio, é vital adotar uma abordagem bastante atenta desvendando as complexidades que envolvem a suposta tentativa de liberdade levada a cabo pelos inconfidentes. Em meio à idealização romântica ou ao aproveitamento de certos simbolismos históricos que muitas vezes cercam essa rebelião, é crucial separar a realidade histórica das narrativas convenientemente simplificadas.
A Inconfidência Mineira, que eclodiu em fins do século XVIII, é frequentemente retratada como um movimento de heróis visionários que buscavam libertar a província de Minas Gerais do jugo colonial e proclamar uma república independente. Entretanto, uma análise mais profunda revela que as motivações por trás da revolta eram multifacetadas e frequentemente egoístas.
Os líderes inconfidentes eram, em grande parte, membros da elite local – mineradores, comerciantes e proprietários de terras – que buscavam proteger seus interesses econômicos e sociais ameaçados pela política fiscal da Coroa Portuguesa. A dívida de Portugal após a Guerra dos Sete Anos e a descoberta de fraudes fiscais nas minas de ouro de Minas Gerais levaram a um aperto das medidas de controle, aumentando a pressão sobre as elites locais. A ideia de liberdade pregada pelos inconfidentes estava, em muitos casos, mais relacionada à liberdade de continuar explorando suas riquezas e privilégios do que à emancipação genuína do povo das Minas Gerais ou mesmo da integralidade da colônia.
Outro ponto de crítica se volta para a falta de inclusividade dos objetivos inconfidentes. A revolta era liderada por homens brancos, ricos e educados, cujas visões muitas vezes não refletiam as preocupações das camadas sociais mais baixas, como escrav os, artesãos e camponeses. Enquanto os inconfidentes falavam em liberdade, a escravidão, que constituía a base econômica da sociedade colonial, raramente era mencionada em suas discussões. Isso levanta questionamentos sobre o verdadeiro alcance de sua luta por liberdade e justiça.
Além disso, a Inconfidência Mineira é frequentemente criticada por sua ingenuidade em relação à eficácia de uma república independente. Muitos inconfidentes eram influenciados pelas ideias iluministas e republicanas vindas da Europa, mas suas ambições pareciam subestimar as complexidades da construção de uma nação livre e soberana. A ausência de um plano de ação concreto e a falta de apoio popular significativo deixaram a revolta em um terreno fértil para o fracasso. Libertar uma região central, logo, sem acesso ao mar, sem uma força militar que se opusesse ao poder metropolitano era de tal modo um fracasso iminente, que espanta que os intelectuais da época não tenham previsto o desfecho mais óbvio.
A repressão implacável do governo colonial ao movimento também suscita questões sobre a natureza de seus líderes. A rápida delação de alguns inconfidentes e a falta de resistência efetiva em face das prisões e perseguições lançam uma sombra sobre a disposição real de lutar por seus ideais. A maioria dos envolvidos cedeu rapidamente às pressões e traiu seus companheiros, revelando uma falta de coesão e comprometimento que levanta dúvidas sobre a verdadeira profundidade de suas convicções.
A Inconfidência Mineira, muitas vezes romantizada como uma saga de bravura e idealismo, deve ser analisada criticamente à luz de seu contexto histórico e das motivações subjacentes. A liberdade que os inconfidentes buscavam era muitas vezes limitada a seus próprios interesses e às suas posições na sociedade. A falta de uma visão inclusiva e o despreparo para as complexidades da independência revelam a natureza inexperiente e utópica de suas aspirações.
Em resumo, a Inconfidência Mineira é um episódio histórico que merece uma análise detalhada e uma visão crítica. Enquanto podemos admirar o desejo de liberdade e autonomia que os inconfidentes expressaram, é vital reconhecer as motivações individuais e coletivas por trás da revolta. A história não pode ser reduzida a uma narrativa de heróis ou vilões; ela é uma tapeçaria complexa de intenções, ações e resultados que exige um olhar atento e uma avaliação equilibrada.
O Alferes Joaquim José da Silva Xavier, mais conhecido como Tiradentes, desempenhou um papel significativo na Inconfidência Mineira, embora suas motivações e interesses pessoais possam ser interpretados de maneira multifacetada.
Tiradentes, ao contrário de alguns outros líderes inconfidentes que eram membros da elite local, era um homem de origem mais modesta. Ele era alferes (um posto militar) e dentista prático, o que lhe conferia uma posição intermediária na sociedade colonial. Sua participação na Inconfidência Mineira está ligada a uma combinação de fatores ideológicos e pessoais.
Em relação a seus interesses pessoais, pode-se argumentar que Tiradentes viu na revolta uma oportunidade de ascensão social e de reconhecimento. Seu envolvimento na conspiração poderia lhe oferecer uma plataforma para superar as limitações impostas por sua origem social e aspirar a uma posição mais elevada na hierarquia da sociedade colonial. Uma república independente, liderada por figuras como ele, poderia resultar em uma nova ordem em que os méritos individuais teriam mais peso do que o status de nascimento. Por esse prisma poderíamos encontrar alguma ligação com o tecnicismo tão comum em tempos recentes da administração brasileira.
Ademais, a participação de Tiradentes na Inconfidência também poderia estar relacionada a um desejo de escapar de suas dificuldades financeiras. Ele tinha dívidas consideráveis e buscava uma saída para suas obrigações financeiras por meio da instauração de uma república independente em Minas Gerais. Essa perspectiva econômica pode ter influenciado sua decisão de se envolver na conspiração, esperando que uma mudança de regime pudesse também implicar uma mudança em suas circunstâncias pessoais.
Além de interesses pessoais, Tiradentes também demonstrou motivações ideológicas e políticas. Ele acreditava nas ideias iluministas e nos princípios de igualdade, liberdade e justiça que estavam ganhando força na época. Sua participação na Inconfidência pode ser vista como um reflexo de seu desejo de contribuir para uma mudança positiva na sociedade, onde as desigualdades e as injustiças seriam confrontadas e superadas.
No entanto, é importante ressaltar que a trajetória de Tiradentes na Inconfidência Mineira foi ambígua e cheia de contradições. Embora suas motivações possam ter sido uma mistura de interesses pessoais e ideais de justiça social, ele acabou sendo o único a ser executado em decorrência da conspiração. Isso pode ser interpretado como um sinal de que suas ações, independente de suas motivações, foram percebidas como uma ameaça significativa ao poder colonial.
Em última análise, os interesses pessoais de Tiradentes na Inconfidência Mineira podem ser considerados como parte de um complexo mosaico de fatores que impulsionaram seu envolvimento. Sua posição social, suas aspirações de reconhecimento e suas dificuldades financeiras podem ter se misturado com suas crenças ideológicas em busca de igualdade e justiça. Sua trajetória revela as nuances e as ambiguidades que muitas vezes acompanham os participantes de movimentos revolucionários, onde os limites entre o pessoal e o coletivo, entre o idealismo e as realidades concretas, podem ser difíceis de traçar claramente.
A condenação de Tiradentes à pena capital, enquanto muitos outros inconfidentes receberam penas mais brandas ou foram perdoados, é um aspecto intrigante da história da Inconfidência Mineira. Essa diferença no tratamento dos envolvidos pode ser atribuída a uma combinação de fatores políticos, sociais e pessoais.
Uma das principais razões para a execução de Tiradentes está ligada ao papel que ele desempenhou na conspiração. Tiradentes se destacou como um dos líderes e figuras públicas mais visíveis da revolta, o que o tornou um alvo mais óbvio para as autoridades coloniais. Sua atuação como porta-voz das ideias inconfidentes e sua capacidade de mobilizar apoiadores tornaram-no uma figura central e, consequentemente, mais vulnerável às ações repressivas das autoridades.
Além disso, é importante considerar as dinâmicas sociais e políticas da época. Tiradentes, embora não fosse o único líder inconfidente, talvez tenha sido escolhido como bode expiatório devido a sua origem social e profissional. Apesar de ser crime de grave traição à Coroa, as necessidades da própria coroa poderiam impor limites às suas ações repressoras. A elite mineira, apesar de tudo, ainda era necessária à administração central. É importante recordar que Portugal desde o princípio da colonização brasileira, era um país de pequena população e possivelmente não poderia dispor de membros de sua própria administração metropolitana para repor posições durante uma punição mais ampla.
Vale destacar ainda que muitos outros inconfidentes eram membros da elite local, possuíam conexões e influências que lhes permitiram buscar clemência ou acordos para diminuir suas penas. As negociações nos bastidores e os apelos influentes muitas vezes resultaram em penas mais brandas ou mesmo no perdão de alguns envolvidos, enquanto a posição mais pública de Tiradentes como líder o deixou mais exposto à ação punitiva das autoridades.
Além disso, a maneira como Tiradentes assumiu a responsabilidade e a visibilidade pelo movimento pode ter influenciado sua sentença. Enquanto outros inconfidentes negaram envolvimento ou minimizaram seu papel, Tiradentes foi notavelmente franco em suas declarações e assumiu a liderança. Isso tornou mais fácil para as autoridades concentrarem a culpabilidade nele, especialmente considerando sua posição como um dos líderes mais reconhecíveis do movimento, por sua movimentação entre o Rio de Janeiro e Minas Gerais.
A reação das autoridades coloniais à revolta também desempenhou um papel crucial na determinação das punições. A coroa portuguesa tinha interesse em conter qualquer movimento de insubordinação nas colônias, principalmente em razão da independência americana ocorrida apenas 13 anos antes. A execução de Tiradentes serviu como um exemplo assustador para desencorajar futuras rebeliões e enfraquecer o movimento insurrecional.
Em última análise, a condenação e execução de Tiradentes refletem uma complexa interação de fatores políticos, sociais e pessoais. Seu papel proeminente no movimento, sua origem social e sua decisão de assumir a liderança de forma pública contribuíram para que ele se tornasse o rosto mais visível da Inconfidência Mineira aos olhos das autoridades coloniais.
Não foi em 1789 que a sociedade brasileira experimentou o sabor da liberdade, até porque o conceito de brasilidade ainda precisaria ser construído para que a liberdade pudesse ser experimentada. Na visão poética de Cecília Meireles, a “liberdade – essa palavra que o sonho humano alimenta: que não há ninguém que explique, e ninguém que não entenda!”, podemos perceber uma possibilidade para entender porquê ainda hoje não a conquistamos plenamente e, o que pensamos ter conquistado estamos a poucos passos de perder.
As razões que levaram à ruína do movimento de 1789 são aparentemente as mesmas que têm prejudicado os objetivos de 2023: nenhum planejamento estratégico; divisões internas; traições de membros mais vinculados com seus projetos pessoais; excesso de idealismo e falta de visão pragmática; veleidade. Por outro lado, assim como nos fins do século XVIII, o poder metropolitano agora encarnado na espada da justiça, destrói impiedosamente qualquer opositor, qualquer tentativa de ataque ao status quo, hoje chamado popularmente de “Estado Democrático de Direito”. O Campo da Lampadosa, cenário do enforcamento de Tiradentes ainda existe. Hoje está localizado a aproximadamente 1200 km de distância da Praça Tiradentes, centro do Rio de Janeiro.
O Brasil segue assistindo enforcamentos e esquartejamentos simbólicos em praça pública. Enquanto alguns rezam em frente aos quartéis pela alma de seus mortos, as hienas riem enquanto saboreiam o sangue inocente de seus mitos.
Artigo publicado na Revista Conhecimento & Cidadania Vol. II N.º 33
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