Durante a Copa do Mundo de futebol em 1986, as seleções da Argentina e da Inglaterra se enfrentaram pelas quartas de finais no Estádio Asteca, restando vitoriosa a equipe sul-americana que, ao final do campeonato, se sagraria a campeã do torneio, entretanto, foi durante aquela apertada vitória sobre os ingleses que um episódio entrou para a história do futebol. A estrela da seleção auriceleste, Diego Maradona, marcara o primeiro gol com a mão, de punho cerrado, o astro do futebol argentino conseguiu atingir a bola em uma dividida com o goleiro inglês. Ao deixar o gramado, Maradona respondeu aos repórteres que o gol, validado e que resultou na vitória argentina por dois a um, foi feito com a “mão de Deus”, atribuindo, de forma jocosa, a vitória da seleção de seu país à vontade divina.
A galhofa do jogar é irrelevante, uma vez que o erro da arbitragem não poderia ser desfeito após o apito final, em verdade, à vitória se resume a uma passagem do futebol mundial e sua relevância se resume ao universo estrito daquele esporte em particular. A Argentina chegaria ao título daquele campeonato, mas garantir que a Inglaterra se sagraria vencedora da partida não fosse o gol irregular validado, ou ainda, chegaria ao título caso vitoriosa naquela partida é um exercício de mera especulação, sem quaisquer fundamentos práticos. A falha do árbitro, naquela situação, torna-se irreversível, portanto, a seleção argentina, que de fato se beneficiou do erro, seguiu no campeonato, mas o chocante foi a forma pela qual grande parte da imprensa, esportiva ou não, tentou justificar o injustificável, relativizando o erro e, de certa forma, dando ar de seriedade às palavras do jogador.
Se por um lado, alguns poderiam argumentar que Diego Maradona não tinha a intenção jocosa quando se referiu à “mão de Deus”, acreditando, de fato, que a vitória veio pela intervenção divina ao favor de seu time, de maneira que, o jogador realmente tinha em seu íntimo que a Argentina merecia e precisava da vitória e, por isso, Deus decidiu dar uma “pequena ajuda” naquela partida. Tratar como uma brincadeira diante de uma pergunta que não tem como ser respondida sem admitir que sua vitória decorrera de um erro e não da competência de marcar gols, fator determinante no futebol.
O erro de arbitragem que classificou a argentina poderia ser explicado, não pelo jogador ou torcedores, que devido a sua ligação romântica com a vitória poderiam atribuí-la a algo maior, mas por analistas em geral, de forma simples. Bastava admitir que se tratava de uma simples falha do árbitro e deixar aos entusiasmados torcedores argentinos a tarefa de tornar o momento lúdico em suas lendas futebolísticas. Todavia, movidos por um sentimento de revanche diante da derrota da Argentina na Guerra das Malvinas, na qual o país sul-americano saiu derrotado do confronto em que disputava a soberania das Ilhas Malvinas, ou Ilhas Falkland, com a mesma Inglaterra, grande parte dos analistas passaram a narrar a vitória na Copa do Mundo como uma resposta dos argentinos aos ingleses, uma forma de revanche, o que justificaria, no imaginário transloucado daqueles que conseguem transpor uma guerra para uma partida de futebol sem maiores constrangimentos, a aceitação de uma vitória conquistada através de um erro como sendo justa e limpa.
De certa forma, não querendo admitir que se comemorava uma vitória advinda de um erro, para não lhe retirar a nobreza da conquista, despiram-se da lógica de que falhas no esporte acontecem e que a vitória injusta, irremediável, deveria ser aceita e todos deveriam apenas seguir adiante, o que criaria apenas mais uma lenda comum ao futebol, em que os lamentos dos injustiçados, sevem apenas para aos vitoriosos, mesmo que consciente da natureza contestável da vitória, façam troça dos vencidos, grande parte dos que discorreram sobre o tema preferiam usar da guerra para dar, falsamente, um ar glorioso ao gol irregular e a vitória questionável.
Cabe ressaltar que na Guerra das Malvinas, ao que apontam as estimativas, o número de baixas da Argentina foi o triplo das inglesas, o que, de certa forma, indicaria que a ajuda divina em favor do país europeu teria sido consideravelmente maior, dando aos argentinos um prêmio de consolação que sequer mereceria um lugar em uma estante velha e tomada por teias. Seria, de fato, pensar pequeno demais considerar que uma vitória desportiva equiparar-se-ia ao infortúnio da derrota em campo de batalha, ou mesmo, significar uma revanche digna de menção.
Na realidade, articulistas reduzidos ao mundo do desporto, ou ávidos por comemorar qualquer sopro de vitória sobre o rival, usaram a narrativa de que era sim digno de se vangloriar da vitória conquistada através de um erro ante a justiça divina feita contra os vencedores da guerra. Muito mais digno fora a simples atitude dos torcedores mais simplórios que, de forma sincera, comemoravam a vitória sem se importar em justificá-la moralmente. O simplista, que acolhe como mero golpe de sorte ou consequência de um erro a dádiva do título, em que pese possa ser acusado de despreocupado, é, sem dúvida, mais integro que aquele que, buscando justificar a vitória por artifícios obscuros, relativizando que a injustiça do futebol fora mera injustiça ao seu favor e não goza de qualquer vestígio de reparação divina.
A relativização da moral está no cerne da desonestidade, um sujeito amoral é, em sua pior face, aquele que tenta transparecer como alguém que possui valores, entretanto, os relativiza tão somente para não se submeter às regras que, indispensavelmente, imporá sob outrem. Adotando a máxima de que “os fins justificam os meios”, sem qualquer apreciação de quais os fins se pretende alcançar, ou mesmo, quais os meios podem ser tolerados, o relativista assume que tudo é válido quando for a seu favor, portanto, não há quaisquer obstáculos que justifiquem a reversão ou arrefecimento de sua intenta revolucionária.
Se, na mente de tais indivíduos, o bem e o mal são relativos, ou seja, a depender do ângulo pelo qual se observa, o bem tornar-se-á mal e vice-versa, de maneira que, pode-se, em busca de um “bem maior”, ainda que tal busca, nitidamente, se resuma a um engodo ou algo que a história provou que se trata de uma empreitada que almeja a utopia, mas que trará a desgraça, como os regimes totalitários e coletivistas que se tentaram implementar no século passado, o socialismo, o nazismo e o fascismo, na mentalidade relativista, admitir que indivíduos sejam solapados em suas liberdades, garantias e mesmo vidas, pois, como não há limites para o mal que se pratica em nome do bem, tudo é permitido quando favorável à luta revolucionária.
Não por acaso o Holocausto e o Holodomor foram práticas de extermínio em massa, adotadas por regimes revolucionários em que seus líderes tiranos dizimaram números alarmantes de vidas para “livrar o mundo” daqueles que eram indesejados pelo regime. Seja o povo judeu, apontado pelos nazistas como seres humanos que mereciam a extinção para que a humanidade ascendesse a uma raça superior, ou mesmo, os agricultores ucranianos que se não foram muito simpáticos ao regime soviético e resistiam a entregar tudo o que possuíam e produziam à tirania de Moscou. O Japão também desumanizou tanto chineses como coreanos durante a Segunda Guerra Mundial, justamente, por considerar que não havia limites para sua intenta.
Admitir que direitos básicos possam ser violados em nome de uma revolução doentia, que prega a falsa libertação de um grupo em razão do extermínio de outro, o qual apontam como opressor, de maneira que, basta indicar quem seria o alvo do ódio revolucionário para, desumanizando-o, destruí-lo sem qualquer pudor. Podemos citar o exemplo da Universidade de Liége, na Bélgica, que, em seu curso obrigatório sobre ecologia e sustentabilidade, aponta, em sua descrição, ser o “homem branco, cristão e heterossexual” o responsável pela degradação do planeta, demonizando um alvo que uma determinada agenda ideológica parece desejar exterminar.
A leitura superficial nos leva a crer que a renomada instituição de ensino está a sugerir que uma forma de proteger o planeta é o extermínio do homem branco, cristão e heterossexual, o que, para os indivíduos acometidos pela doença do relativismo moral pode ser um gatilho para que se justifique a destruição de um grupo determinado, os homens brancos, cristãos e heterossexuais, em busca de um bem maior, que é salvar o ecossistema, e, portanto, o restante da humanidade. Imaginemos a substituição dos termos branco, cristão e heterossexual por judeus e estamos diante de uma clara propaganda nazista, ou, por outro prisma, se fossem os termos substituídos pela expressão “negro”, talvez acreditássemos ser um texto extraído das entranhas da odiosa Ku Klux Klan.
Talvez não fosse de grande surpresa se o trecho fosse uma produção do doentio grupo ativista Black Lives Matter, entretanto, ao perceber que a autora da frase bestial é, na verdade, uma renomada universidade europeia, não há como ignorar o quão perigoso é o aval acadêmico entorno de um pensamento que pode servir como base para a eugenia, especialmente, em uma sociedade carente de base moral sólida e que deposita uma fé irracional naquilo que define como ciência, ou seja, se um pensamento absurdo, abjeto ou esquizofrênico é apresentado por alguém que ostenta títulos acadêmicos, há um risco real de ser acolhido como pensamento científico e, no cenário atual, irrefutável com base no argumento de autoridade, por mais que tal autoridade seja uma criação artificial das próprias universidades, devendo, para alguns, ser seguido cegamente.
O experimento social totalitário bem-sucedido em âmbito global, que submetera milhares, talvez bilhões, a usarem métodos sem quaisquer explicações razoáveis, criando uma espécie de coerção científica, serve como alerta, no que tange, ao exacerbado poder conferido aos ocupantes de bancos acadêmicos, afirmando que títulos conferidos pelas universidades podem servir de chancela para que um pensamento nocivo seja recepcionado pela sociedade como um mote inquestionável. Ao produzir uma chamada no campo acadêmico que associa um grupo, que parece ser o alvo dos revolucionários, cria-se um arcabouço que serve de fundamento para a propositura de políticas que, de fato, promovam o extermínio do grupo em questão.
Ao promover o pensamento de que o homem branco, cristão e heterossexual pode ser, ainda que de forma indireta, o responsável pela degradação do planeta, nutre-se o argumento, nas camadas mais rasas dos revolucionários que o extermínio de tal grupo se justifica por uma causa maior, por analogia, amputar um membro para salvar o corpo. O risco, conscientemente assumido pelos senhores revolucionários, ao propagarem ideias que pregam a eugenia de seus alvos do alto de sua “torre de marfim”, figura na interpretação das hordas bestializadas de vassalos da revolução, desprovidas de uma moral consistente, tornam-se agressores em potencial, buscando o “justiçamento” proposto por seus senhores.
Em um trágico mundo tomado por pensamentos relativistas, no qual qualquer regra pode ser distorcida conforme os interesses revolucionários, é imperioso cuidar da honra daqueles que, por ventura, busquem o confronto face aos transloucados, de maneira que, a pergunta que devemos nos fazer se trata da linha entre a moralidade e a necessidade que não pode ser cruzada, bem como, considerar os meios pelo qual se pode vencer um desonesto conservando a honestidades. Diante de um confronto no qual, um lado, desprovido de moralidade, utiliza de todo tipo de ardil para chegar à vitória, mas clama para que o outro mantenha a retidão em suas ações, o controle emocional torna-se indispensável, posto que, o maior temor do justo é tornar-se ímpio quando na tentativa de vencer, ou resistir, o ímpio.
Pode parecer algo confuso, mas não é um exercício tão complexo se imaginarmos diversos exemplos reais que nos cercam. Citamos os herdeiros ideológicos de anistiados pelo regime militar, alguns dos quais praticaram crimes violentos que resultaram até mesmo na morte de suas vítimas, que bradam para que não sejam anistiados indivíduos que são acusados por supostos crimes sem que estivessem armas, causando lesão a integridade de terceiro e cujo objeto sabe-se impossível. Na mesma toada, aqueles que alegavam lutar contra a censura e buscam criminalizar a zombaria, os chamados “memes”, para, na verdade calar qualquer voz dissonante de sua ideologia política.
Como não se espantar com vozes que outrora reclamavam de um Estado policial, adulam inquéritos intermináveis e com objeto indeterminado, podendo incluir qualquer um no rol de investigados e indiciados, impedindo até mesmo que patronos tenham acesso à informações de inquéritos, suprimindo as prerrogativas da advocacia, que na verdade é do indivíduo assistido pelo casuístico. A tão aclamada atuação da Ordem dos Advogados como base de resistência durante o regime militar, ditatorial, parece ter se tornado uma página virada na história, permitindo que, mesmo os advogados sejam tolhidos de sua, até então, nobre missão.
O exemplo do professor de Direito que, ao apresentar uma palestra fumando, sendo questionado por um aluno a respeito de exigir-se o cumprimento das normas mesmo praticando algo que era apontado como proibido, respondeu que a placa não se destinava ao professor, pois estava direcionada aos alunos, de maneira que não precisava se sujeitar a regra. O caso foi usado para ilustrar como a lei por ser interpretada conforme a ótica do interprete, dando clara impressão que alguns, ao menos, os que gozam de tal poder, não precisam se curvar aos ditames da lei, posto que, sendo o interprete, poderá relativizar a norma ao seu bel prazer.
A grande dificuldade em se opor ao revolucionário reside, justamente, no ponto em que, por se tratar de um indivíduo cuja moral e as regras podem ser relativizadas, está no fato de não poder, o opositor, se rebaixar ao nível de desonestidade de seu adversário, de forma que, ao confrontar alguém que exige o cumprimento das normas de um certame, mas que está disposto a violá-las sem quaisquer constrangimentos, como alguém que, hasteia a bandeira branca, mas ataca de forma pérfida tão logo o seu oponente aceite a rendição, como um covarde que pede ao seu rival que se dispa de armas para tornar a luta equânime quando, em verdade, oculta sua arma para sacá-la logo após se certificar que seu inimigo está desarmado, ou seja, um duelista desonesto.
Ao exemplo do que ocorrera na Venezuela, a evidente derrota da ditadura nas eleições não foi reconhecida pelo regime daquele país, haja vista que, o governo revolucionário não se dobrara as regras que foram previstas para o processo eleitoral, o que pode levantar a suspeita acerca de quaisquer eventos de igual natureza, posto que, se o poder está nas mão de relativistas, como não duvidar que estes não se sujeitam às derrotas, distorcendo as regras e resultados para que sirvam ao seu propósito, fazendo com que, tudo sofra a ingerência dos controladores do regime.
No filme O Grande Dragão Branco, estrelado por Jean-Claude Van Damme, ator belga de filmes de luta, que interpreta Frank Dux, ao enfrentar o antagonista de nome Chong Li, na final do campeonato denominado Kumite, é surpreendido quando o vilão usa de um artifício para prejudicar a visão do Frank, entretanto, como tinha se preparado para lutar mesmo em condições adversas, o herói da película acaba sagrando-se vitorioso. Neste sentido, por mais que não se pretenda promover a violação das normas, deve-se ter em mente que o outro lado a violará, preparando-se para um inimigo capaz de qualquer medida para alcançar a vitória.
Voltando ao caso do embate entre Argentina e Inglaterra, mesmo que a seleção brasileira, anfitriã da Copa do Mundo de 2014, tivesse a ajuda da arbitragem para ganhar o jogo contra a Alemanha, em nada surtiria efeito um gol irregular validado em favor do Brasil, pois, a larga vantagem da seleção europeia não permitiria que uma simples intervenção pudesse virar o resultado, logo, é preciso ter em mente que, uma vez preparado para um adversário ardilosos, deve-se esperar que o desonesto lance mão de todos os recursos, ainda que ilegais, para chegar ao seu objetivo, devendo manter-se forte o suficiente para vencê-lo mesmo diante da desvantagem de se cumprir as regras.
Por outro lado, é sabido que algumas vezes, mesmo o árbitro pode ser um jogador disfarçado de imparcial, não cometendo erro que possam desequilibrar a partida, mas atuando diretamente em busca de um resultado favorável ao seu lado, algo que, salvo na mentalidade relativista, é inadmissível. No âmbito do futebol, seria fácil compreender que um árbitro, escalado para um jogo de duas seleções, jamais poderia ser oriundo de um dos países envolvidos, bem como, de um interessado no resultado, portanto, não seria razoável que o árbitro comemorasse a vitória sobre a seleção rival ao término da partida, mas para um relativista, como o outro lado sequer deve ser respeitado, não há problemas em uma violação de tal tipo, ainda que toda a sociedade seja diretamente afetada pelo resultado, uma vez que, não sempre se trata de um simples campeonato de futebol.
Para uma sociedade corroída, parece que o senso de justiça é considerado quando se trata de um desporto e não em se tratando dos rumos da sociedade como nação ou civilização, restando claro que a contaminação do relativismo moral tomou as almas das pessoas como a ferrugem que condena engrenagens a não mais funcionarem.
“Quem luta com monstros deve velar por que, ao fazê-lo, não se transforme também em monstro. E se tu olhares, durante muito tempo, para um abismo, o abismo também olha para dentro de ti”. Friedrich Nietzsche.
Mesmo guardando ressalvas ao pensamento de Nietzsche, a frase em questão se aplica muito bem ao que precisamos compreender na luta contra aqueles que não se dispõem a respeitar as regras, invocando as leis tão somente como obstáculos aos adversários. Como duelistas desonrados que pretendem alcançar a vitória ainda que negociem até com o diabo, dispostos a violarem direitos fundamentais ainda que supliquem que sejam cumpridos até mesmo aos mais atrozes dos criminosos. Cabe o exemplo do revolucionário e professor Elias Jabour que não vê problemas na aplicação da pena capital àqueles que se insurjam contra a revolução, mas que considera tal penalidade inválida em países não socialistas, ou seja, não sendo aplicáveis a crimes hediondos, contudo, aceitáveis, no imaginário relativista ao que não comunguem de sua crença ideológica doentia.
O maior desafio dos bons não é apenas vencer o mal, mas não se corromperem no processo.
Artigo publicado na Revista Conhecimento & Cidadania Vol. III N.º 47 – ISSN 2764-3867