A primeira coisa que um ser humano deveria fazer ao acordar, é lembrar-se que é somente um ser humano, agradecer a Deus por sua pequena e, ao mesmo tempo, magnífica existência. Olhar a grandeza do mundo, não importa o quão bela ou pavorosa seja sua vista, para contemplar a gigantesca obra da qual é parte, mantendo assim a altivez, sem, contudo, perder a humildade.
A alma humana é um pequeno diamante, valioso e bruto, que merece sim ser lapidado, todavia, não deve, em nenhuma hipótese, ser tratada como mercadoria, pois seu valor é inestimável. Quando afirmo que nossa existência é magnífica, tomo por base a impossibilidade de medir o que significa a vida, o presente nos dado por Deus, por outro lado, ao lembrar de nossa pequenez, precisamos saber que há limites que não nos é facultado ultrapassar, de maneira que, não devemos, não importa o quão sedutor pareça, esquecer de nossa natureza frágil, como algo sem igual, é indispensável lembrarmos que somos parte da criação inspirada mas devemos compreender que todos os outros também são.
Como aquela passagem da cultura pop norte-americana, em que o personagem ficcional Peter Parker, o Homem-Aranha, ouve de seu tio que “grandes poderes trazem grandes responsabilidade”, alertando que aquele que, por qualquer motivo, se colocam em uma condição de poder, devem, acima de tudo, arcar com sua consequência. Prefiro aqui invocar um ensinamento que não sofrera, e não sofrerá, a erosão do tempo, apontando que “Mas aquele que não a conhece e pratica coisas merecedoras de castigo, receberá poucos açoites. A quem muito foi dado, muito será exigido; e a quem muito foi confiado, muito mais será pedido” (Lucas 12:48), restando claro que, na ficção ou na verdade, a premissa de responsabilizar-se por suas ações, e ainda, ser ainda mais responsável quando se tem maior conhecimento, poder ou a confiança é inegável.
Não existe vácuo de poder
Quando se trata de relações humanas, é impossível afastar as relações de poder, posto que, a segunda é consequência inevitável da primeira. Mesmo as alcateias possuem líderes, não seria diferente com um ser mais complexo.
Em uma situação de total solidão não há uma relação de poder, podendo o indivíduo se autodisciplinar, guardando sua fé e criando suas próprias regras, evitando assim que seja reduzido a um estado de selvageria. Conservar sua noção de mundo civilizado impede que o homem, ainda que só, comporte-se como um animal.
No que respeito à sociedade, é natural que existam relações de interdependência e que vontades entrem em conflito, daí, imperioso que sejam convencionadas regras de coexistência. O direito natural surgirá, como seu próprio nome define, naturalmente, com base na interna concepção de justiça, de moral, de certo e errado, de bem e mal, entre outras premissas que decorrem umas das outras, como uma entrelaçada teia que se liga de forma harmônica.
Se não existe vácuo de poder, é de presumir que, toda vez que não se pode observar a relação de líder e liderado, esta ainda existirá, bem como, toda vez que não decorrer de uma noção natural, será o poder dado por aclamação ou reivindicado por aquele que se achar na condição de exercê-lo, podendo obter sucesso, ou não, em tal intenta. É preciso compreender tais origens das relações de poder e compreender que, em regra, a revindicada tem maior propensão à usurpação.
Quando a relação humana possui uma estrutura na qual naturalmente o poder está ligado ao espaço em que o seu detentor ocupa, não há como usurpá-lo sem contaminar totalmente a própria relação, logo, não é possível ser um líder ilegítimo de uma relação naturalmente imposta, salvo se a própria relação não existir. Não há como um pai usurpar o poder que tem sobre os filhos, haja vista que, tal relação é naturalmente imposta, logo, se o indivíduo que não é o ocupante do posto de liderança, se coloca em tamanha posição através de uma fraude, fingindo ser o pai de alguém, em verdade, a relação é toda maculada, pois, não é aquele que deveria estar na posição que ocupa. Não há como se subordinar a um falso pai, o que existe a falsa crença acerca e quem é o verdadeiro ocupante daquela posição.
Alguns sugerirão que um padrasto poderia fazê-lo, caso conquiste a admiração e respeito de seu enteado, assumindo assim o papel de um pai, mas tal erro está na origem e não na relação de poder, pelo simples fato de que o poder do padrasto decorre do reconhecimento por parte do enteado, logo, está, em um primeiro momento, na primeira infância adstrito ao poder da mãe, sendo algo reflexo, e, após o reconhecimento da autoridade pelo enteado, na aclamação do mesmo. Não é uma decorrência da natureza, mas o liderado passa a confiar ao líder o poder por acreditar em sua liderança, o que é o chamado poder por aclamação.
O poder de um pai, ainda que usado para o mal, é legítimo e nunca usurpado. O poder por aclamação, que resulta da elevação de um indivíduo à condição de líder pelo reconhecimento dos liderados surge de forma ascendente, de maneira que, os liderados aclamam seu líder que é por eles elevado à tal posto, tal modalidade, só admitirá a usurpação quando há uma circunstância desconhecida por aqueles que delegaram poder ao líder, levando à constatação que, havendo vício na escolha, a aclamação não é legítima pois não se traduz na vontade daqueles que escolheram.
A aclamação viciada seria como uma eleição em que se desconhece a verdadeira natureza do eleito, de forma que, os eleitores foram enganados. Em tal hipótese, havendo ou não o dolo do líder, sua escolha decorre de um erro, de maneira que sua ascensão ao poder é ilegítima.
No caso do poder revindicado, aquele que se considera apto para assumir o papel de liderança, se coloca em posição de ocupar tal posto, sendo ratificada ou rechaçada a sua propositura pelos liderados. No entanto, a revindicação pode ser feita de forma coercitiva, seja pela ameaça ou pela força, usurpando o poder de forma que os subjugados não tenham alternativas.
Não obstante se o poder foi conquistado de forma natural, por aclamação ou revindicada, ou mesmo, se é legítimo ou usurpado, sempre poderá ser corrompido pela tirania e transformado em um instrumento maligno. Uma vez que o detentor do poder não encontre limites em seu caminho, tornar-se-á despótico e descontrolado, infringindo o mal e devastando todos aqueles que estejam ao alcance de suas presas famintas.
A pior das consequências do abuso de poder é a perda da consciência, fazendo com que o déspota se transmute em um tirano que se enxerga como divino, cuja vassalagem daqueles que o alimentam, por ganância ou medo, acaba encorajando a avançar sempre mais.
Não existindo vácuo de poder, é natural que alguém ocupe qualquer posição em vacância transitória, independentemente de como chegou ao posto de liderança. Por outro lado, não importa se a ascensão ao poder se dera de forma legítima, pela fraude ou a usurpação, se decorre de uma relação de liderança natural, aclamada ou revindicada, sempre haverá hipóteses em que o detentor do poder poderá ficar cego, esquecendo-se dos limites de suas atribuições ou das consequências de suas decisões.
Uma expressão comum, o poder subiu-lhe a cabeça, indica que certo indivíduo foi tomado pela ganância e a soberba, julgando-se mais do que um ser humano comum, uma espécie de “autoendeusamento”, que tornar-se-á ainda mais grave quando tal visão transloucada encontrar eco em aduladores. Perdendo a noção de seus limites, aqueles que se consideram semideuses, ou mesmo um deus, tendem a uma postura autoritária descabida, que, somada a adoração dos que precisam de um tirano, ou louco, para fazer cumprir seus anseios, acabam inflando a deturpada autoimagem do detentor do poder, ao ponto de ser a existência ligada ao exercício do poder, logo, o indivíduo torna-se senhor e escravo de sua posição de dominante. Uma vez em tal posição, cada vez mais, o líder, que se tornou um déspota impiedoso, açoita os demais para reafirmar sua soberania.
O morro
A expressão “dono do morro” deve ser compreendida em um contexto, no caso, as favelas da cidade do Rio de Janeiro que são construídas em encostas de morros.
O verbete trata de criminosos que impõem suas regras em tais locais, sendo assim, o “morro”, no cotidiano da capital fluminense, e demais cidades que compõe sua região metropolitana, define-se como a comunidade que, relegada pelo poder público, sofre a ingerência dos marginais, não sendo, necessariamente, um acidente geográfico.
As áreas que são consideradas periferia, acabam sendo tratadas como morro, mesmo as favelas planas são, por vezes, assim definidas, bem como, no sentido oposto, não é adotado o termo para um bairro nobre, ou de classe média, em tal acidente geográfico. O importante é frisar que a expressão morro, no jargão carioca é usado para definir as favelas, também chamadas comunidades carentes, ainda que sejam estas em terreno plano.
Por muito tempo se utilizou os termos “morro e asfalto” para distinguir as favelas dos bairros em geram, como de costume, servindo à narrativa revolucionária de segregação, entre oprimidos e opressores, colocando no primeiro espectro os moradores das favelas e no segundo os demais cidadãos, considerados abastados e exploradores. A criminalização da classe média e da riqueza podia ser incutida no imaginário dos moradores das favelas, pois, as pessoas do asfalto eram seus algozes, ao menos segundo a narrativa revolucionária.
A narrativa se consolida ao justificar que crimes contra os mais ricos, em especial, contra a chamada classe média, talvez o maior alvo da revolução, são meios de trazer equilíbrio às relações entre opressores e oprimidos. O crime organizado, que tem a revolução correndo por suas veias, aproveita-se disso para assumir a postura assistencialista e de governo, impondo uma espécie de soberania paralela, atualmente não tão paralela, aos que vivem nas comunidades carentes.
O morro torna-se um conceito abstrato, uma terra em que impera a lei do mais forte, em que o detentor do poder açoita livremente quem não consegue se opor à sua tirania, por isso, não foi usado o termo “morro” e sim “morros”, tendo em vista, que qualquer ambiente pode se tornar uma terra sob o julgo de um tirano. Os donos dos morros não trata de um indivíduo que domina determinada favela, ou mesmo, de políticas fracassadas, mas de qualquer relação de poder exercida com base em um tirânico abuso e constante intimidação.
Claro que as favelas do Rio de janeiro se enquadram entre os morros, mas há diversos outros exemplos que podem ser elencados para, de forma ampla, servirem como morros para a proposta que se pretende enfrentar. Assim sendo, uma cidade pode ser considerada um morro com um dono, quando a comparação se dá entre o líder de uma organização criminosa, que exerce o poder de forma desmedida, e um déspota que, dentro daquele outro ambiente, o faça de igual forma.
Um bom exemplo é o chamado coronelismo, em que uma região sofria a influência política de um indivíduo que não poderia ser confrontado. O assim chamado coronel, ou melhor, “coroné”, posto que não se tratava de uma patente militar, era o senhor inconteste daquela região e, por vezes, tinha a possibilidade de dobrar os demais cidadãos da localidade por maios legais, tendo o sistema político ao seu serviço, bem como, por meios marginais à lei, por não temer as consequências de suas ações.
Analisando tal premissa, como não constatar que há inúmeros donos dos morros, ou coronéis, espalhados pelo Brasil e pelo mundo. Como negar que o próprio Kim Jong-un é uma espécie de “coroné” da Coreia do Norte e que Nicolás Maduro exerce a mesma função na nossa vizinha Venezuela. Poder-se-ia admitir que os cidadãos de ambos os países, são reféns de seus líderes, como moradores de favelas dos criminosos.
Nos países supracitados não é possível questionar o ditador, aquele que o tentar será solenemente esmagado e, provavelmente, acusado de um crime imaginário ou indescritível, uma mera desculpa para eliminar qualquer voz dissonante.
Em muitos casos há uma figura que pode ser apontada como o “dono do morro”, embora é nítido que tal figura não atue sozinho, pois, mesmo uma “coroné” precisa ter seus jagunços. Contudo, em outros exemplos, é impossível nominar quem ocupa tal posição, não sendo o grupo que exerce a tirania representado por uma personalidade, como facções criminosas ou grupos que acabam tendo uma marca, casos em que, a figura nefasta é ocupada por um ser despersonificado, que atua por diversas faces e mãos, em que pese, usualmente exista um indivíduo que ocupe, ainda que de forma transitória, o trono dos déspotas.
Um bom exemplo são os partidos de ideologias coletivistas, revolucionários que, ao assumirem o controle expurgam ou eliminam todos aquele que pode se colocar como obstáculo à sua intenta odiosa, seja um partido comunista, nacional-socialista ou fascista, em verdade, irmãos gerados no útero da revolução, sempre haverá uma tirania exercida por tal elite em razão dos demais, todavia, é comum a ascensão de um de seus membros ao topo da vil organização, como ocorrera com Vladimir Lenin, Adolf Hitler e Benito Mussolini, e, atualmente, acomete a China e outros tantas nações.
O sorriso do tirano
Assim como nem todo herói usa capa, nem todo tirano apresentar-se-á como tal, sempre haverá uma roupagem de falsa bondade, ao menos até que o poder seja tamanho, que não possa ser contrariado. Por tal razão, existe aquele famoso provérbio, “quer conhecer o caráter de um homem, dê-lhe poder”, atribuída, sem confirmação oficial, a Abraham Lincon, 16º Presidenet dos Estados Unidos da América.
Muitos chegam ao poder de forma dissimulada, como Adolf Hitler, que, líder do Partido Nazista, ascendeu ao posto de chanceler alemão na República de Weimar, ou seja, assumindo a condição de chefe de governo pelas vias democráticas. Por isso, pode-se dizer que o povo alemão, de uma forma geral, o espiava como um líder legítimo, ao passo que o líder nacional-socialista tomava o poder e aparelhava as instituições.
A República de Weimar foi implodida por indivíduos que buscavam o poder de forma absoluta, sendo, somente depois de envenenada, solapada por tiranos que, ao se revelarem, já não podiam ser destituídos de seus palácios. Por isso, o povo foi desarmado, a Schutzstaffel, conhecida como SS, uma milícia nazista, elevada ao ponto de ter seu próprio exército e absorver outras forças, incluindo a polícia secreta, bem como, foi criado Volksgerichtshof, o Tribunal do Povo, responsável por julgar crimes políticos e traições, dando ar de legitimidade as acusações e punições que os nazistas pretendiam.
Não há como não lembra do trecho de Eclesiastes 1:9, “nada há de novo debaixo do sol”.
As organizações criminosas mantém seus próprios tribunais, aplicando sanções conforme sua vontade aos que, por infortúnio, acabam sujeitos aos seus desmandos. Atualmente, muitos são abandonados indefesos e, por isso, jurisdicionados pela soberania desse verdadeiro Estado paralelo, ou não tão paralelo assim.
O dono do morro não teme as consequências de suas ações, uma vez que, estando no topo da cadeia de poder, acreta que todos, inclusive as leis, lhe devem obediência irrestrita, massacrando as vontades daqueles que se encontram sob seu julgo. Seu despotismo o permite desdenhar do sofrimento alheio, fazer pouco-caso das liberdades e proferir ameaças de forma generalizada e constante.
Essa criatura abjeta pisa em seus adversários com um dos pés e em seus vassalos com o outro, como quem se apoia em formigas para pisar em outras. Seu poder está na subserviência dos corruptos, na ignorância dos que preferem não buscar a verdade e na omissão dos covardes.
Mas os donos dos morros possuem uma fraqueza. Por exercerem sua tirania sem limites, acabam por desmoronar quando, aqueles que preferem a paz ao confronto, acabam por perceber que sua tranquilidade nada mais é que uma prisão sem muros. Como diz o refrão de uma música, de uma banda chamada O Rappa, que particularmente não gosto, “paz sem voz, não é paz, é medo”.
Os avanços autoritários acabam por ultrapassar limites que, mesmo aos vassalos, são insuperáveis, resultando no despertar forçado de grande parte. Os donos dos morros poderiam sentenciar a morte ou prisão qualquer um que suas mão alcancem, ainda assim, aos interessados em seus feitos, tal mal seria aplaudido, talvez, em um cenário ainda mais tenebroso, exigir o chamado “jus primae noctis”, o que, em tese, seria amplamente questionado. O período da pandemia nos apresentou diversos donos dos morros.
Os donos dos morros desdenham da impunidade e se regojizam de suas vítimas, em regra, inocentes, para, muitas vezes, reafirmarem seu poder. Sabem que, quanto mais as pessoas se curvam ante sua tirania, mais podem avançar.
Quando observamos seres que se consideram sagrados e incapazes de renunciar ao poder, estamos diante dos chamados donos dos morros. São fáceis de identificar e difíceis de combater, mas não há mal que dure para sempre, por isso, é necessário perseverar.
Ao final, o mal se autodestruirá.
Texto veiculado na Revista Conhecimento & Cidadania Vol. II N.º 31 – ISSN 2764-3867