Uma cartilha feita nas coxas

Uma cartilha feita nas coxas

Zeus, o senhor dos deuses olimpianos, como de costume, manteve um relacionamento extraconjugal com Sêmele, o que irritou a esposa do senhor do panteon grego, Hera a rainha do Olimpo, que decidiu castigar Sêmele, convencendo a mesma para que pedisse ao poderoso amante a visão de sua forma verdadeira. A mortal não sabia que a visão de um deus seria fatal e, após grande insistência, Zeus se apresentou em seu esplendor à Sêmele, de forma que a amante do Cronida foi fulminada em uma explosão.

Sêmele estava grávida de Zeus e, por ser um semideus, o filho de ambos, ainda em formação, sobrevivera à explosão, entretanto, sem o útero de sua mãe, o feto restaria morto. Ao perceber o que ocorrera, Zeus fez um corte em sua coxa e lá, colocou o pequeno feto e costurou a ferida com sua prole dentro, para que ali crescesse.

Diz-se que Dionísio nascera duas vezes, pois, deixou o útero de sua mãe quando a mesma morrera e, posteriormente, nasceu da coxa de seu pai. O deus do vinho, que precisou se afirmar para conquistar seu lugar entre os deuses e tinha uma vida nada divina, parece ter sido feito nas coxas, o que pode ser uma origem do termo.

Dionísio pode ser considerado um deus cuja história é, no mínimo conturbada, não se enquadrando em uma visão divina tradicional, sendo curado de sua loucura pela deusa Cibele. Assim, poderíamos imaginar que a origem da expressão “feito nas coxas” remete ao deus grego que teve um nascimento e uma vida nada ortodoxos, fazendo crer que, ao chamar aquilo que é mal feito de tal forma, nos remetemos à divindade em razão de sua natureza.

Há também o caso do nascimento de Erictónio, filho de Hefesto e, de certa forma, de Atena, cuja concepção seria o resultado de uma tentativa frustrada do deus forjador de violar a virgem deusa da sabedoria, o que fez com que a semente de Hefesto caísse na coxa de Atena. A deusa da sabedoria se limpou, jogando a semente no chão, nascendo assim Erictónio, que reinaria a cidade de Atenas.

Tal versão para a origem do termo feito nas coxas se assemelha, claro que com as devidas ressalvas, a apresentada por estudiosos que afastaram a transloucada narrativa de que o termo surgiu do período escravagista, em que, supostamente, telhas eram feitas nas coxas de escravos inaptos para o trabalho, desconsiderando o tamanho padrão de telhas e a exposição ao calor, intensidade ou tempo, que tal obra de olaria exige.

Recentemente, o Tribunal Superior Eleitoral do Brasil, deixando de lado sua missão constitucional, cuja existência é, no mínimo questionável, publicou uma cartilha na qual apresentou sugestões de termos que não deveriam ser utilizados por, supostamente, terem conotações racistas. Tal folheto, por mais bizarro que pareça, está disponível no site oficial da instituição autoproclamada democrática. Em seu corpo, além de diversas expressões, nos chama a atenção o número quarenta e seis, em que a Corte indica que o termo “feito nas coxas” possui uma origem racista.

O que mais alarma na leitura de tal cartilha, lembrando que me restrinjo à parte que trata do “feito nas coxas”, é, justamente, o Tribunal ter incluído, em seu panfleto chamado cartilha, uma expressão sem ter a certeza de sua origem e, pior ainda, ter se imiscuído em um tema que em nada lhe diz respeito. Fazendo daquela Corte uma casa de proselitismo político progressista, quando deveria se dedicar ao processo eleitoral, o que, com as devidas vênias, nos faz refletir se a justiça eleitoral brasileira está em condições de coordenar o processo de escolha dos representantes, ou, em uma triste, mais inafastável, hipótese, não estaria conduzindo as escolhas ao seu bel-prazer, posto que, assume uma postura ativa no campo ideológico.

Para melhor ilustrar, transcrevo, com o pesar de quem suja as mãos para apontar um erro, o texto contido na cartilha do TSE

A expressão “feito nas coxas” é utilizada para designar algo realizado de modo apressado, sem muito apuro, descuidado. Não há certeza sobre as origens do termo, mas existem algumas hipóteses que são levantadas de modo mais corriqueiro.

Uma das proposições mais repetidas dá conta de que a expressão repetiria o hábito colonial de produção de telhas moldadas nas coxas de pessoas escravizadas, trabalho realizado por produtividade e, por isso, mecânico e sem muito zelo pela uniformidade das telhas criadas”.

Em seguida, a cartilha reconhece que tal teoria, em verdade uma narrativa, foi afastada em razão da desproporcionalidade entre a coxa humana e o tamanho padrão de uma telha, entretanto, negando-se a deixar seu proselitismo de lado, o órgão jurisdicional insiste em contraindicar o uso do termo, apontando que

Ainda que não haja pleno consenso sobre as origens do termo, o linguajar cotidiano costuma associá-lo ao trabalho da pessoa negra, algo de baixa qualidade, malfeito.

Assim, a expressão acaba reproduzindo uma ideia racista e merece ser abandonada, podendo facilmente ser substituída por outras que transmitam a mesma mensagem”.

Causa espanto que um órgão jurisdicional assuma uma postura em que uma hipótese não confirmada sirva como pano de fundo para uma orientação, ainda que sem o caráter coercitivo, em razão de sua vontade, admitindo assim que, ainda que não assista razão a uma das partes, poderia o Poder Judiciário decidir em favor dela devido à corrente ideológica que o órgão julgador se filia. Em síntese, estamos diante de um órgão julgador do alto escalão, que, além de se posicionar diante de um tema que não guarda relação com o processo eleitoral, pois, cuida de uma análise linguística, delibera a respeito de algo, assumindo uma posição, sem qualquer fundamento legal ou lógico, fazendo de sua conveniência um mote que deve ser adotado.

Tudo indica que a Justiça Eleitoral, após comemorar seus noventa anos de existência, apresenta claro sinal de senilidade, no pior sentido da palavra, tornando-se uma figura que não justifica sequer sua existência e segue rumo ao Hades sem preservar sua história, se é que há algo na existência de tal vertente do Poder Judiciário que mereça ser preservado.

Artigo publicado na Revista Conhecimento & Cidadania Vol. II N.º 28

Sobre o autor

Munique Costa

Bacharel em Direito, autora do livro Direito nas Escolas, diretora administrativa do Curso Menezes Costa, secretária executiva na ABRAJUC e colunista na Revista Conhecimento & Cidadania.

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BIOGRAFIA

Leandro Costa

Servidor público, advogado impedido, professor de Direito, Diretor Acadêmico do projeto Direito nas Escolas e editor-chefe da Revista Conhecimento & Cidadania.

Defensor de uma sociedade rica em valores, acredito que o Brasil despertou e luta para sair da lama vermelha que tentou nos engolir. Sob às bênçãos de Deus defenderemos nossa pátria, família e liberdade, tendo como arma a verdade.

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